Reinaldo Azevedo

Jornalista, autor de “Máximas de um País Mínimo”

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Reinaldo Azevedo

Onde estávamos nós, da imprensa, quando se fabricou uma sonegação de R$ 150 bi?

Sob silêncio cúmplice, patranhas com o ICMS e Carf fabricaram uma escandalosa elisão fiscal

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Essa semana foi pródiga em evidências de que há uma diferença nada singela entre o interesse público e os donos da pauta. Estes já estiveram mais próximos daqueles, mas as divergências no país, no governo Bolsonaro, já me manifestei a respeito no rádio e em vídeo, passaram por um processo de infantilização e voltaram a formas primitivas de exercício da vontade. A criança, como sabem mães e pais, não costuma se contentar só com parte da satisfação do seu desejo. É tudo ou berreiro. Com o tempo, aprende a negociar. Mas nem sempre acontece.

Assim estamos no "debate econômico" —ou que nome tenha o que parece, às vezes, uma revolta da creche. Como os infantes aqui servem apenas à ilustração, não se trata de uma representação perfeita dos fatos. Os mais assertivos, nessa área, podem se manifestar na forma de birrentos barbados, pelos já encanecidos muitas vezes, apartados daquela liberdade tardia e sem paixões com que o pastor Títiro, na Primeira "Bucólica", de Virgílio, vê cair, um tanto melancólico, os fios brancos do rosto.

Cédulas de real - Gabriel Cabral-21.ago.19/Folhapress

Andei revisitando tudo o que escrevemos —"nós", da imprensa— em dois anos importantes para as finanças públicas —ou para seu desequilíbrio. Sei que esse pronome é genérico demais, junta gente demais, reúne desiguais demais. Se puder, no entanto, representar uma espécie de coro da tragédia ou de voz pública, vamos caminhando. Um coro da imprudência, bem entendido.

Onde estávamos quando, em 2020, o governo Bolsonaro e Paulo Guedes promoveram o fim do voto de qualidade no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais)? Em carta a Fernando Haddad, como noticiou este jornal, Grace Perez-Navarro, diretora do Centro de Política e Administração Tributária da OCDE, afirmou não haver nada semelhante no mundo. Nos outros países do planeta, "as revisões são realizadas por funcionários do governo da administração tributária ou do Ministério das Finanças".

Ela também expressou estupefação com o fato de que, ainda assim, se a empresa perder o pleito no Carf, o que hoje é quase impossível, pode recorrer à Justiça, o que o governo está impedido de fazer. Desde que se operou a mudança, sob o nosso quase silêncio cúmplice, o Estado (com as vênias por empregar a palavra) perdeu todas. Deixam-se de arrecadar R$ 60 bilhões por ano, estima-se.

O governo Lula tentou resgatar o voto de qualidade —o interesse público desempata a contenda— numa medida provisória. Fez-se um escarcéu. "Insegurança jurídica!", gritou-se. As pressões resultaram numa tentativa de acordo que pode gerar outro modelo único, mas menos pernicioso: o poder público retoma a prerrogativa da decisão, mas livra o sonegador de multa e juros. O crime tributário, pois, continuará a compensar.

Onde estávamos quando se introduziram patranhas na Lei Complementar 160, em 2017, e se inventou uma outra espetacular jabuticaba do nativismo sonegador, com a criação do "bis in idem" da não tributação? Em síntese, a Justiça já tinha pacificado a não cobrança de IRPJ (Imposto de Renda de Pessoa Jurídica) e CSLL (Contribuição Social Sobre Lucro Líquido), impostos federais, para quem declara ter recolhido 14% de ICMS, embora tenha pagado só 10% —é um exemplo ilustrativo—, com a condição de que a diferença se transforme em investimento. Tem lá seu aspecto polêmico porque o incentivo dado pelo Estado, sem consultar ninguém, impacta a Federação. Mas vá lá.

Desde 2017, os espertalhões pegam aqueles 4% e o direcionaram para o caixa —para custeio e afins—, não investem um centavo e, ainda assim, essa parcela continuou isenta de IRPJ e CSLL. Demos à luz a sonegação em cascata. O absurdo tem preço: uns R$ 90 bilhões ao ano. Por 9 a 0, a 1ª Seção do STJ apontou a ilegalidade —escandalosa, diga-se— de tal prática. Um André Mendonça apareceu no meio do caminho, mas penso que sua liminar vai cair.

Chega-se, iluminando-se apenas dois porões tributários, a uma elisão fiscal de R$ 150 bilhões. Mas aquelas crianças crescidas, apegadas a suas ideias fixas, cobram o corte severo de gastos, o que certamente tornaria ainda pior a vida dos pobres. À diferença de Títiro, ainda não se libertaram das paixões. Como poetas não são, trata-se de interesses. Alguns são até bem mesquinhos, apesar de aparente robustez teórica.

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