Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

Bandeirantes de consciência pesada

Testamentos de bandeirantes mostram que a feiura da estátua de Borba Gato é o menor dos problemas deles

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Fato: a estátua de Borba Gato é mais feia do que Satanás chupando uma fruta-do-conde. Poucas coisas diminuiriam mais a FIB (Feiura Interna Bruta) de Santo Amaro do que uma discreta remoção da estátua e sua substituição por, sei lá, uma muda de ipê-amarelo. Mas horroroso mesmo era o tipo de justificativa que os bandeirantes usavam para agir como agiam. Mais do que botar abaixo o Borba Gato, o que falta é o conhecimento detalhado do que os “heroicos paulistas” realmente representaram.

Já posso ouvir a Patrulha do Anacronismo Histórico batendo na minha porta. “Mas veja bem”, dizem os patrulheiros, “no século 17 ninguém via problema nenhum em sair por aí invadindo aldeias ou missões jesuíticas e escravizando índio”. Cascata maior que essa jamais foi pronunciada, gentil leitor.

Ocorre que, ao menos no papel, a Coroa portuguesa tinha estabelecido regras bastante estritas quanto à principal (e, durante muito tempo, a única) atividade dos bandeirantes, o apresamento dos “gentios da terra”. Em condições normais, os indígenas do Brasil-Colônia não podiam ser escravizados.

Estátua de Borba Gato, em Santo Amaro, São Paulo
Estátua de Borba Gato, em Santo Amaro, São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress

Para que fosse lícito reduzir os nativos à servidão, era preciso que eles fossem capturados durante uma “guerra justa” —em tese, um conflito defensivo, no qual os colonos fossem a parte atacada, ou pelo menos no qual os índios desobedecessem a uma ordem legítima de seu soberano, o rei de Portugal. (Abstraia aí o fato de que, claro, o rei não perguntou a tupinambás ou carijós se eles topavam ser seus súditos.)

O problema é que, se dependessem só dos indígenas realmente capturados em guerras justas, os bandeirantes iam acabar com quase nenhum escravo nas suas fazendas de trigo (o principal sorvedouro de cativos). Por isso, à revelia do governo ibérico e da pregação dos jesuítas, eles não tinham grandes pruridos em atacar indígenas que não haviam dado qualquer motivo para uma “guerra justa”.

Só que até bandeirantes podiam sofrer de consciência pesada na hora de bater as botas (ou esticar as canelas, já que eles parecem ter andado descalços na vida real). É o que sugerem alguns testamentos da época, como o de Lourenço de Siqueira: “Declaro que eu tenho algumas peças de gentio do Brasil as quais por lei de Sua Majestade são forras e livres e eu por tais as deixo e declaro, e lhes peço perdão de alguma força ou injustiça que lhes haja feito, e de lhes não ter pago seu serviço como era obrigado”. Lindo, mas Siqueira arremata pedindo que os índios... continuem servindo à sua mulher.

Já Lucrécia Leme, em seu testamento, declara: “Possuo nove peças do gentio da terra, e uma criança, as quais tratei sempre como livres que são de sua natureza”. É, só que o texto prossegue: “Por serem incapazes de se regerem por si as administrava com aquele cuidado cristão, valendo-se de seu serviço em ordem a alimentá-los e nesta mesma ordem os poderão reger meus herdeiros”. Então tá.

Caso ainda não tenha ficado claro: a escravidão indígena era indiscutivelmente ilegal, e mesmo assim os paulistas do século 17 a justificavam pelo “uso e costume da terra”. Leis que não pegam, jeitinho, suposta cordialidade e “cuidado cristão” encobrindo um subsolo de violência —francamente, não mudamos porcaria nenhuma.

(Os testamentos bandeirantes estão no livro “Negros da Terra”, do saudoso historiador John Manuel Monteiro. Se não for para aposentar o Borba Gato, que se distribua uma cópia a cada aluno do ensino médio de São Paulo.)

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