Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Reinaldo José Lopes

'Cabelos' formados por bactérias ajudaram vida complexa a evoluir no fundo do mar

'Cabeleira' poderia servir de fonte de alimento para os estranhos invertebrados do Ediacarano

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Que o leitor imagine, se puder, o fundo do mar há 563 milhões de anos —antes das baleias, antes dos grandes répteis aquáticos da Era dos Dinossauros, antes até dos trilobitas (aqueles invertebrados extintos que parecem cruzamento de caranguejo amassado com disco voador). Não é fácil, admito. Mas pesquisadores do Brasil e do Canadá usaram fósseis sutilíssimos para fazer com que esse mistério ficasse um pouco menos cabeludo. Ou mais cabeludo, para ser exato.

Ocorre que os fósseis estudados por eles sugerem que ao menos parte do solo marinho de então —a parte que ficou preservada em certas rochas do interior catarinense, no caso—​ estava recoberta de bactérias “gigantes” que lembravam os fios de uma cabeleira. Aproveitando-se das condições geoquímicas peculiares do oceano daquela época, elas podem até ter dado um empurrãozinho significativo na evolução das primeiras formas de vida complexa, que estavam surgindo e se diversificando na mesma época.

Os achados a esse respeito estão descritos em artigo publicado recentemente no periódico científico Proceedings of the Royal Society B. Assinado por Bruno Becker-Kerber, da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e da Universidade de Poitiers, junto com colegas de quatro outras instituições, o trabalho é uma análise de mais de 1.600 fósseis filamentosos, que podiam chegar a 4,4 cm de comprimento, mas mediam apenas 0,2 mm de espessura. Ou seja, relativamente compridos, mas finíssimos (nas fotos do artigo, um buraco de agulha é usado para comparação, num simpático toque caseiro).

Fios longos no fundo do mar
Representação artística de bactérias gigantes que lembravam os fios de uma cabeleira - Proceedings of the Royal Society B

As rochas com os fósseis, oriundas de uma estrada vicinal entre as localidades de Apiúna e Subida (SC), correspondem ao período Ediacarano, fase da história da Terra entre 635 milhões de anos e 541 milhões de anos atrás. Trata-se do momento em que, após um predomínio das formas de vida com uma só célula que perdurara desde os primórdios do planeta, a evolução finalmente começa a brincar de construir corpos multicelulares, como os nossos hoje em dia.

Bem, não exatamente, para falar a verdade. No Ediacarano, os seres de muitas células não se parecem com quase nada do que veio depois, com a possível exceção de um ou outro invertebrado marinho. Muitos têm formas discoidais, achatadas; outros parecem penas fincadas no solo marinho; e há ainda os que lembram uma pilha de copinhos encaixados uns nos outros. A relação entre tais criaturas e os animais que surgiram depois ainda não está 100% clara.

Após analisar as características dos filamentos fossilizados (como o fato de aparentemente estarem presos ao solo marinho e de terem sido originalmente flexíveis), os pesquisadores concluíram que muito provavelmente eles correspondem a bactérias similares às que existem em certos ambientes aquáticos de hoje, cujas células costumam usar H2S (sulfeto de hidrogênio) como fonte de energia.

Tudo indica que elas formavam suas “cabeleiras” em locais na fronteira entre profundidades com níveis mais altos e mais baixos de oxigênio na água. Poderiam servir de fonte de alimento para os estranhos invertebrados do Ediacarano, mas também retirariam da água boa parte do enxofre (correspondente ao S da fórmula H2S), que costuma ser tóxico para animais marinhos.

Portanto, propõem os pesquisadores, é possível que uma associação estreita entre a “cabeleira” marinha e os mais antigos animais tenha sido importante para os passos seguintes da história da vida. Sim, aquele mar parecia um mundo alienígena —mas continha as sementes para a diversidade que ainda vemos ao nosso redor agora. ​

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.