Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

A importância de ser infante

Infância lenta típica da nossa espécie foi essencial para que surgissem habilidades humanas

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"Saiba, todo mundo foi neném/Einstein, Freud e Platão também", dizia a canção de Arnaldo Antunes, na voz doce de Adriana Calcanhoto, que às vezes eu colocava no rádio do carro para ouvir com meus filhos. Poucas experiências são mais transformadoras para a cabeça e as emoções de um ser humano do que ver de perto um bebê crescer —se você ainda não tentou, eu recomendo. Para quem está olhando de fora, pode parecer algo banal, mas há excelentes razões para acreditar que o lentíssimo ritmo desse processo é um dos elementos-chave para transformar o Homo sapiens no que ele é hoje. Sem o nosso tipo muito particular de infância, não haveria humanidade.

OK, é verdade que somos apenas o caso extremo de uma tendência que já vinha acontecendo em boa parte do grupo dos primatas, ao qual pertencemos. Enquanto muitos outros mamíferos, como os ungulados (vacas, ovelhas, cavalos etc.), colocam no mundo filhotes capazes de ficar de pé logo depois do nascimento, os primatas recém-nascidos frequentemente passam anos dependendo da mãe (e, mais raramente, do pai) da maneira mais profunda. Entre os chimpanzés, nossos parentes mais próximos, essa "infância" vai até os dez anos de idade, mais ou menos.

Criança brinca em dia quente em Jerusalem - Ronen Zvulun - 19.jul.22/Reuters

Como sabemos, no entanto, para os padrões dos seres humanos, dez anos ainda é muito pouco. É claro que isso varia um pouco conforme o local, a época e a cultura, mas o período que vai dos 11 anos até o começo da idade adulta é crucial entre nós, abrangendo mudanças hormonais e de estrutura cerebral de grande escala.

Esse período muito ampliado de desenvolvimento não deve ter surgido por uma única razão, mas é razoável supor que ele desempenhe um papel importante na sobrevivência dos indivíduos e grupos da nossa espécie. E um novo trabalho, publicado no periódico especializado Science Advances, traz pistas preciosas sobre isso. A ideia é que uma infância longuíssima é essencial para que os seres humanos aprendam a obter recursos alimentares de alta qualidade.

Coordenado por Ilaria Pretelli, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionista, na Alemanha, o estudo analisou dados de 28 sociedades tradicionais mundo afora, da América do Sul à Oceania, passando pela África e Ásia. Muitos desses grupos obtêm a maior parte ou a totalidade de sua subsistência da caça e da coleta.

Os dados estudados por Pretelli e seus colegas abrangem mais de 700 crianças e adolescentes dessas comunidades. Primeiro, eles descobriram, como seria de esperar, que a capacidade de obter alimentos na natureza aumenta de forma constante com a idade. Em média, crianças de cinco anos de idade conseguem trazer para casa 20% do que um adulto conseguiria. Essa proporção sobe para 50% aos dez anos de idade. E o maior salto de produtividade acontece entre os 11 anos e os 20 anos.

Parece que o valor da infância prolongada já saiu ganhando de 1 a 0, portanto, mas a situação é ainda mais interessante e complicada. Os dados mostram ainda que os recursos obtidos pelas crianças são, em geral, os mais fáceis de colher (frutas e mariscos), e que a habilidade de encontrá-los e levá-los para casa atinge seu máximo já na adolescência.

No entanto, os recursos mais ricos em nutrientes e difíceis de encontrar (caça e tubérculos) só passam a ser obtidos com eficiência quando os indivíduos se tornam adultos jovens.

Ou seja, a dieta que caracteriza todas as culturas humanas, muito mais recheada de calorias do que a de qualquer chimpanzé, simplesmente seria inviável sem uma mãozinha da infância longa. Eis uma maravilha que faz qualquer birra de criança parecer, no fim das contas, coisa pequena e passageira.

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