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Descrição de chapéu dinossauro

A descoberta que solucionou o dilema de Darwin

Como o achado da fauna de Ediacara resolveu um ponto fraco da teoria da evolução

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Fabrício Caxito

Darwin é conhecido e celebrado por sua teoria da evolução, que causou a grande mudança de paradigma no modo como os seres humanos enxergam seu papel na vida do planeta. Mas talvez nem todo mundo esteja a par de uma faceta sua: a capacidade de indicar os aspectos vulneráveis da própria teoria, que seriam testados e solucionados ao longo do século seguinte e até os dias de hoje. Um desses pontos fracos é o famoso "dilema de Darwin".

A teoria da evolução implica mudanças graduais e o aparecimento de novas espécies a partir da seleção natural. Mas ela precisou enfrentar um grande desafio: como explicar que na época em que Darwin propôs sua teoria, em meados do século 19, não se conhecessem fósseis visíveis a olho nu em camadas sedimentares anteriores a cerca de 510 milhões de anos, período referido como "explosão cambriana"?

Arte ilustra um homem olhando no fundo de uma espécie de lente. Em segundo plano, ele aparece andando em um cenário de águas vivas coloridas.
Ilustração: Clarice Wenzel - Instituto Serrapilheira

De fato, fósseis encontrados em rochas depositadas durante a explosão cambriana, tais como os folhelhos de Burgess, no Canadá, apresentam enorme variedade de animais complexos, como por exemplo os trilobitas, artrópodes marinhos então muito disseminados. Até a metade do século 20, quase um século depois de Darwin, não se conheciam ainda fósseis em rochas mais antigas do que estas, depositadas ao longo dos primeiros 4 bilhões de anos de história da Terra. Estaria a teoria da evolução incorreta? Não haveria animais mais antigos que os trilobitas, que de repente "explodiram" em diversas formas diferentes durante o Cambriano? Este dilema, a ausência de fósseis que demonstrassem as fases evolutivas intermediárias até a chegada da explosão Cambriana, foi um dos principais desafios à teoria da evolução.

O próprio Charles Doolittle Walcott, o paleontólogo estadunidense que descobriu os fósseis de Burgess em 1909, forneceu as primeiras pistas. Vasculhando toda a América do Norte, Walcott descobriu fósseis microscópicos, invisíveis a olho nu, em diversas rochas pré-cambrianas, isto é, depositadas antes do período cambriano. Alguns destes fósseis foram posteriormente identificados como antigas algas planctônicas, e outros foram identificados como possíveis fósseis de bactérias.

Alguns destes microrganismos chegavam a construir colônias que formavam estromatólitos, estruturas reconhecíveis em antigas rochas no mundo todo. Estava demonstrado que a vida não havia surgido no Cambriano de forma repentina e já nas suas mais diversas formas: existiam resquícios muito mais antigos. Estes vestígios, porém, são muito diferentes do que estamos acostumados quando pensamos em fósseis, imaginando logo um esqueleto completo de um Tiranossauro Rex — eles são mais sutis e precisam ser lidos com o auxílio de equipamentos como o microscópio.

Essa situação, porém, viria a mudar rapidamente. Em 1947, o geólogo Reginald Sprigg anunciou a descoberta, na região das colinas Ediacara, no sul da Austrália, de marcas em forma de disco (possivelmente deixadas por criaturas parecidas com águas-vivas, no fundo de um oceano antigo). Sprigg acreditava ter encontrado outro depósito relacionado à explosão cambriana, porém alguns anos depois o paleontólogo Martin Glaessner demonstrou que estas rochas sedimentares eram mais velhas – e a "fauna de Ediacara" passou a constituir o conjunto de fósseis de animais mais antigos.

Desde então, fósseis dos estranhos organismos ediacaranos foram vistos em diversas outras localidades, e em 2004 um novo período geológico foi formalmente definido, o Ediacarano, entre 635 e 538 milhões de anos atrás. A fauna de Ediacara inclui desde os primeiros organismos capazes de construir conchas calcáreas, até aqueles de corpos moles difíceis de enquadrar em qualquer subdivisão da vida.

Os fósseis ediacaranos revelam não apenas a presença de animais complexos antes da explosão cambriana, como interessantes interações ecológicas entre eles. Por exemplo, nas conchas calcárias de algumas formas de vida veem-se pequenos furos, provavelmente deixados por algum predador que se movia pelo fundo dos mares – teria sido essa a razão de terem desenvolvido uma concha protetora.

A descoberta de fósseis pré-cambrianos e fósseis microscópicos em rochas mais antigas resolve o dilema de Darwin, mas levanta outras questões, como toda boa descoberta científica. Por que os organismos complexos não aparecem gradualmente no registro fóssil, mas sim agrupados em assembleias com diversos tipos de corpos de animais em intervalos específicos da evolução da Terra?

Uma linha de pensamento defende que o problema real não é a existência dos corpos, mas sua preservação como fósseis. As marcas deixadas pelos animais e os remanescentes de seus esqueletos e conchas passam por diversos processos depois de sua morte, com variações em diversos fatores, como a temperatura, pressão e dissolução química dos sedimentos até que eles se tornem endurecidos e se transformem em rochas sedimentares. Neste processo, o registro fóssil pode desaparecer em parte, ou mesmo completamente. Os locais de preservação de fósseis cambrianos e ediacaranos representariam os momentos em que ocorreu uma conjunção de fatores favoráveis, até sua descoberta, 500 milhões de anos depois.

Outro grupo sustenta que o surgimento e a proliferação de diversas formas de vida num intervalo relativamente curto, isto é, uma "explosão", é real e não mero artefato de preservação. Neste caso, provavelmente os genes que determinam as características dos animais já existiam bem antes e só estavam em estado dormente. Alguma pressão externa, talvez relacionada a uma brusca mudança climática, de ambiente, ou de composição química da atmosfera e da água do mar, pode então ter suscitado uma atuação célere da seleção natural sobre esses organismos, favorecendo aqueles que desenvolveram características que lhes permitiriam sobreviver nas novas condições.

Este tipo de raciocínio faz sentido quando pensamos que os primeiros organismos de Ediacara surgiram depois que a Terra passou pela Bola de Neve, o maior evento glacial que o planeta já vivenciou. Quando o gelo derreteu, os novos ambientes podem ter agido prontamente sobre os potenciais genes, acarretando uma acelerada diversificação das espécies. Uma diversificação rápida de traços, como por exemplo olhos aptos a uma visão em profundidade complexa e a organização de corpos capazes de mobilidade ligeira, pode ter ocasionado uma corrida armamentista entre predadores e presas, de tal modo que cada adaptação adotada por um dos dois (por exemplo, as conchas para proteção) era prontamente respondida pelo outro.

Assim entramos nessa espiral, que, 500 milhões de anos depois, torna possível que os leitores deste texto usem seu aparato mental, uma dessas armas evolutivas mais avançadas, para procurar vestígios de vida em antigas rochas sedimentares e imaginar como era essa vida nos oceanos antigos.

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Fabrício Caxito é professor de geologia, pesquisador principal no projeto GeoLife MOBILE e filósofo pela UFMG.

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