Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

Britânica reinventa mulheres da mitologia grega em livros e podcasts hilários

Natalie Haynes mostra como os mitos foram e são usados para promover misoginia e desigualdade

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Alguns meses atrás, tive uma experiência esquisitíssima: a de gargalhar sozinho enquanto lavava louça, ouvindo um podcast sobre, acredite se quiser, a "Ilíada" e a "Odisseia". É, aqueles poemas de Homero em grego antigo.

O motivo do meu colapso hilariante foi escutar a classicista britânica Natalie Haynes, apresentadora do podcast, retratando de um jeito peculiar o efeito provocado pelo herói Odisseu (ou Ulisses, como é mais conhecido) na expectativa de vida de quase todo mundo ao seu redor.

"Uma das principais lições da mitologia grega é que, se você for homem e quiser continuar vivo, é melhor sair de perto de Odisseu o mais rápido possível", diverte-se ela – de fato, a quantidade de companheiros (e inimigos) do herói que vai parar no Hades ao longo da "Odisseia" enquanto só ele escapa ileso é um negócio portentoso.

A escritora britânica Natalie Haynes
A escritora britânica Natalie Haynes - Divulgação

Além de estrelar o podcast, Haynes é autora de uma série de livros sobre a mitologia greco-romana e o mundo da Antiguidade, dois dos quais —"O Jarro de Pandora" e "Olhar Petrificante" (esse, é claro, sobre o mito de Medusa)— acabam de chegar ao Brasil. O bom humor contagiante e mordaz é um dos principais ingredientes de seu trabalho. Mas a outra parte da receita de Haynes é uma fúria quase irreprimível diante de injustiças antigas e modernas, diante da maneira como os mitos e a cultura greco-romana foram e são usados para promover misoginia, desigualdade e ilusões de superioridade cultural.

"Acho que a minha mistura é essa mesma", disse-me Haynes em conversa telefônica. "De fato, eu não separo muito as coisas: não vejo por que não deveríamos ver o lado engraçado mesmo em situações trágicas, ou por que não faria sentido se divertir com a nossa indignação."

Colocando as coisas nesses termos, você pode acabar achando que o trabalho da autora não passa de desconstrução pela desconstrução. Nada poderia estar mais longe da verdade. Haynes emprega todos os recursos de sua erudição portentosa —da análise dos textos literários originais ao exame arguto de pinturas em vasos, esculturas, inscrições— para enxergar o que há por trás das muitas camadas da tradição mitológica greco-romana.

O resultado é capaz de surpreender até quem cresceu com essas histórias. É possível que você tenha estranhado, por exemplo, o título de um dos livros que citei acima. Sim, o nome é mesmo "O Jarro de Pandora", e não "A Caixa de Pandora", como nos acostumamos a ouvir.

Segundo o mito, trata-se do recipiente que continha todos os males do mundo, o qual Pandora, a primeira mulher, teria aberto inadvertidamente, condenando assim a humanidade a enfrentar para sempre desgraças como a caxumba, o mosquito Aedes aegypti e o sertanejo universitário.

Ocorre, porém, que estamos diante de um daqueles erros históricos de tradução. O termo original que designa o recipiente é "pithos", uma espécie de jarro de cerâmica alto e estreito na parte de baixo, que era muito fácil de derrubar, como mostram os muitos cacos nos sítios arqueológicos gregos. Durante a Renascença, o erudito Erasmo de Roterdã parece ter confundido "pithos" com "pyxis" (esse sim um termo para "caixa"). A pobre Pandora, desse modo, passou a ser descrita como uma enxerida que deliberadamente abriu a caixa dos males, em vez de alguém que esbarrou num jarro praticamente feito para se esborrachar!

Surpresas parecidas aguardam o leitor quando chega a vez de Haynes abordar a trajetória de figuras como Helena de Troia, Penélope (a mulher de Odisseu/Ulisses —spoiler: talvez ela não tenha sido tão paciente e/ou cegamente fiel como normalmente a retratam) e, é claro, a temida Medusa, uma figura muito mais trágica do que monstruosa, no fim das contas.

Para ela, essas narrativas estão mais vivas do que nunca. "Acabamos esquecendo que, nas últimas décadas, as peças dos dramaturgos gregos sobre episódios da mitologia têm sido encenadas com mais frequência do que a época de ouro de Atenas", pondera. A obra de Haynes é a melhor introdução possível ao legado de luz e sombras dessas histórias.

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