Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu mudança climática

Amazônia ressequida

Secura extrema na Amazônia pode ser futuro permanente da região caso ação contra crise climática fracasse

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A reação mais fácil às cenas tristes dos últimos dias na Amazônia é atribuí-las ao azar. Mais de uma centena de botos que morreram "cozinhados" pelo calor da água de um lago? Uma desgraça, mas temperaturas extremas e seca acontecem de vez em quando. É a vida, gente.

Não há razão nenhuma para acreditar que seja só isso o que está acontecendo, no entanto. Sim, há um componente de acaso, ou "ruído", inerente ao sistema climático, que leva a variações capazes de produzir eventos extremos. Mas diversos fatores nada casuais têm se juntado para fragilizar os ecossistemas amazônicos.

Se compararmos a floresta a uma armadura verde, a conclusão inevitável é que buracos têm aparecido nela com frequência cada vez maior —buracos pelos quais as flechas do desastre climático conseguem passar com crescente facilidade.

Boto morto na beira de um lago  no Amazonas
Mais de cem botos vermelhos e tucuxis foram achados mortos no lago Tefé, no Amazonas, e nas proximidades - André Zumak - 23.set.23/Instituto Mamirauá

Escrevi no começo deste ano sobre dois dos diagnósticos mais completos do problema até agora, assinados por pesquisadores como Carlos Nobre, da USP, e David Lapola, da Unicamp. Essas análises demonstram, por exemplo, que eventos climáticos extremos —tanto secas devastadoras quanto enchentes fora de controle— atingiram a região amazônica em 9 dos últimos 15 anos. Isso é mais do que todas as situações similares (apenas 7) durante o século 20 inteiro.

Uma parcela considerável por trás dessa mudança assustadora deriva do aumento da temperatura média do planeta (cerca de 1,1ºC até agora), produzido pela queima de combustíveis fósseis. A Amazônia é uma região cujas temperaturas normais já não estão tão longe assim do limite que animais e plantas suportam bem, o que significa que mudanças desse tipo empurram a situação para mais perto do intolerável.

Efeitos mais locais, porém, são igualmente importantes, além de retroalimentar os perigos globais. De modo geral, podemos dizer que a exploração desenfreada desde a segunda metade do século passado tem comido a floresta pelas bordas —é o célebre arco do desmatamento, que se estende do sudeste do Pará rumo a Rondônia e ao Acre.

Esse processo de "comer pelas beiradas" tem afetado primeiro as áreas relativamente mais secas e mais sazonais (ou seja, com maior variação entre as estações do ano) do bioma. Mais desmatadas e/ou queimadas, essas áreas de mata passam por um processo de fragilização da sua capacidade de resistir a incêndios e reciclar chuva.

Esse segundo ponto é muito importante, já que cerca de metade dos 14,1 trilhões de metros cúbicos de chuva que costumam (ou talvez, melhor dizendo, costumavam) despencar na região todo ano são catalisados pela própria mata, que emite partículas em torno das quais nuvens se formam. Não há como retirar a mata e esperar que o clima, em nível local e regional (para não falar do global) continue o mesmo, portanto.

Agora, pense nesses processos como uma espécie de efeito-dominó. As matas que desaparecem no arco do desmatamento deixam desguarnecidas e expostas aos efeitos da fronteira agrícola áreas do bioma que antes só tinham contato com outros trechos da floresta. O ciclo se repete: mais vulnerabilidade ao fogo, facilidade menor para reciclar água —e uma nova fileira de dominós cai.

Não é por acaso que existe o temor de que o bioma amazônico alcance um ponto de não retorno: um momento no qual porções significativas dele deixarão de se comportar funcionalmente como floresta — com todas as interações biológicas e climáticas que isso implica— e vão se transformar em savana. Se isso acontecer, não haverá ar-condicionado no mundo capaz de transformar Manaus e Belém em cidades habitáveis, ou de viabilizar a agropecuária da região —a mesma que, hoje, é parte do problema. O primeiro passo para evitar o pior cenário é reconhecer que, por ora, estamos colaborando para construí-lo, tijolo por tijolo numa parede trágica.

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