Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

O planeta se salva sozinho

Dizer que o planeta se salva sozinho minimiza o status de força geológica devastadora que a humanidade atingiu

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Antonio Pinheiro Pedro, que acaba de ser exonerado do cargo de secretário-executivo de Mudanças Climáticas do município de São Paulo, andou dizendo por aí que "o planeta se salva sozinho". Afirmou ainda que "nós somos parte do problema para a vida na Terra neste momento, mas nossa solução é muito pequena. Os fatores são de ordem geológica, cósmica e solar". Será mesmo?

Esse tipo de afirmação é capaz de deixar qualquer pessoa com a cabeça no lugar fula da vida. E isso tanto pelas implicações éticas escrotas embutidas em tais frases quanto pela tremenda confusão conceitual. O sujeito pega um aspecto da trajetória geológica do planeta que, vá lá, superficialmente bate com o que ele está dizendo, e tira disso uma conclusão estapafúrdia. Vou tentar dissipar um pouco essa névoa de imprecisão e picaretagem.

Reconstrução artística da Era dos Dinossauros
Reconstrução artística da Era dos Dinossauros - Joschua Knüppe

Primeiro: se, com a frase "o planeta se salva sozinho", ele quer dizer que a quase-esfera rochosa chamada Terra vai continuar girando em torno do Sol seja lá qual for a imprevidência cometida pela mão humana no futuro —tá, isso é (provavelmente) verdade. (Digo "provavelmente" porque convém jamais subestimar a capacidade da nossa espécie para cometer bobagens.)

Mas é óbvio que, quando dizemos "o planeta", trata-se de um jeito simplificado de se referir à biosfera, ou seja, ao conjunto de seres vivos que fazem da Terra, ao menos por enquanto, um lugar único no Cosmos. E é aí que as frases de Pinheiro Pedro passam a soar particularmente falaciosas.

Sim, é fato que mudanças ambientais de origem natural acontecem desde sempre por aqui. No entanto, estragos com magnitude similar aos dos que estamos causando neste exato momento são muito, muito raros.

Não é por acaso que, ao longo do último bilhão de anos (bilhão, veja bem), tivemos uma lista de apenas cinco grandes extinções em massa, as chamadas Big Five. Já está claro para muitos biólogos, aliás, que estamos atravessando a Sexta Extinção, diretamente causada pela ação humana.

Outro detalhe importante a ser mencionado é que quatro das Big Five foram fruto de processos naturais que se desenrolaram ao longo de centenas de milhares de anos, ou até um pouco mais do que isso.

A única dessas extinções em massa do passado que se compara à atual no que diz respeito à velocidade de ação é a de 66 milhões de anos atrás, que deu cabo dos dinossauros que não eram aves e de uma ampla variedade de outras espécies em pouco tempo. Não sei quanto a vocês, mas me revira um pouco o estômago pensar que a espécie à qual pertenço pode acabar tendo o mesmo efeito sobre a Terra que o da queda de um meteorito de vários quilômetros de extensão.

Sabemos que a biosfera se recuperou no passado —após milhões de anos, e com o desaparecimento completo de vastos galhos da Árvore da Vida. Mas me parece perfeitamente legítimo se perguntar se isso seria mesmo possível num mundo profundamente antropizado, debaixo do jugo da civilização humana.

Tem gente que acha que a crise ambiental pode nos exterminar e enfim "dar uma colher de chá" para a biosfera. Temo que o mais provável seja o contrário. Se não criarmos juízo nas próximas décadas, algum tipo de civilização tecnológica quase certamente sobreviverá —mas com uma mentalidade tão viciada em extorquir recursos naturais que estará condenando a biosfera a uma espécie de servidão perpétua.

Nesse cenário, o espaço que permitiu o renascimento da biodiversidade depois de cada uma das Big Five jamais ficaria aberto de novo. Novas espécies não teriam como nascer num mundo no qual nossos descendentes monopolizariam todos os recursos —como já temos feito cada vez mais.

Um mundo desses seria a Abominação da Desolação. É esse risco que a gente quer correr?

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