Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Camadas do fundo de um lago retratam como presença humana transformou radicalmente a Terra

Cientistas sugeriram Crawford, no Canadá, como marca do início do Antropoceno

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"O mundo está mudando: sinto-o na água, sinto-o na terra e farejo-o no ar." Quem só assistiu aos filmes da série "O Senhor dos Anéis" se acostumou a ouvir essa frase na voz augusta de Cate Blanchett (a elfa Galadriel); nos livros, quem a pronuncia é o ent (gigante arvoresco) Barbárvore. Trata-se, no fundo, de um resumo da conclusão do romance de fantasia de J.R.R. Tolkien: o fim de uma era e o começo de outra, caracterizada pelo Domínio dos Homens. E se fosse possível detectar diretamente algo muito parecido com isso no nosso mundo do século 21? Algo que prove, para além de qualquer dúvida, que a nossa espécie passou a moldar a Terra de forma irreversível?

A resposta a essa pergunta pode ser encontrada em muitos lugares, mas tudo indica que a versão mais contundente e consolidada dela, a que entrará para os livros de geologia e de história, vem do lago Crawford, no Canadá. Os cientistas encarregados de definir formalmente o início do chamado Antropoceno –a época geológica caracterizada pela intervenção humana maciça em diversos aspectos do funcionamento do planeta– estão usando o lago como o exemplo por excelência desse fenômeno.

É por isso que convido o leitor para um mergulho naquelas águas alcalinas. Entender os detalhes que fazem do lugar um exemplo tão útil para entender o Antropoceno é, ao mesmo tempo, uma pequena aula de método científico e um retrato do poderio –frequentemente destrutivo– que desenvolvemos como espécie.

Lago Crawford, no Canadá, que cientistas sugeriram como o marco do começo do Antropoceno, a época dos humanos - Peter Power - 12.abr.23/AFP

Uma das análises mais completas da lagoa canadense foi publicado na revista científica The Anthropocene Review por uma equipe da Universidade Brock, no Canadá. A primeira coisa a se ter em mente é que o lago Crawford parece um grande funil: relativamente pequeno (2,4 hectares de área) e fundo (24 m entre a superfície e o leito). Isso faz com que as camadas d’água, embora bem oxigenadas, misturem-se pouco. Por causa da salinidade e alcalinidade elevadas, há pouca vida animal no fundo.

E esse é o primeiro grande pulo do gato: tais características fazem com que camadas muito estáveis de sedimento possam se depositar anualmente no leito do lago Crawford. Todo ano é a mesma história: durante o outono, uma lâmina mais escura de matéria orgânica desce ao fundo (como estamos no Canadá, muitas árvores perdem as folhas nessa época); no verão, essa camada é recoberta por outra, mais clara, de minerais ricos em cálcio. Essa regularidade nunca é bagunçada pela chamada bioturbação (invertebrados aquáticos cavando o leito, por exemplo).

Ou seja, o fundo do lago é um reloginho, ou melhor, um calendário. Cilindros de sedimento tirados de seu fundo podem ser datados ano a ano com pouquíssima incerteza.

Isso significa que dá para identificar com precisão o aparecimento do elemento químico plutônio –resultado direto do uso de armas nucleares, principalmente em testes militares– a partir de 1948, com um pico em 1967 e uma queda nos anos 1980. Dada a natureza dos elementos radioativos, essa assinatura estará lá rigorosamente "para sempre" (ao menos do ponto de vista humano).

Algo muito parecido vale para as chamadas SCPs (partículas esferoidais carbonáceas, na sigla inglesa). Elas são produzidas pela queima industrial, em altas temperaturas, de carvão mineral e derivados do petróleo. Começam a aparecer nos sedimentos da segunda metade do século 19, mas sua presença só dispara mesmo, de novo, no começo dos anos 1950. Nada que não seja a ação humana poderia produzir esse fenômeno.

É por isso que os cientistas estão propondo o ano de 1950 como o início do Antropoceno. Ainda que a proposta não "pegue" nesse formato exato, o peso de evidências como as camadas do lago Crawford é dificílimo de contrariar. Está na água, na terra e no ar. E, para o bem ou para o mal, a responsabilidade é nossa.

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