Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

Mania de achar que as pessoas estão ficando piores é ilusão antiga

Pessimismo sobre quem está ao nosso redor às vezes não passa de minhoca na cabeça

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"Essa juventude está muito mudada", reclama o patriarca. "Ninguém quer mais saber de trabalhar duro e de estudar, ninguém mais ajuda o vizinho, ninguém trata os mais velhos com educação." Sou capaz de apostar que você já ouviu reclamações desse tipo diversas vezes, ou mesmo já as emitiu. Talvez até concorde com elas. Mas será que afirmações assim refletem um fenômeno real?

Bem, um detalhe que deveria nos deixar com a pulga atrás da orelha é que frases semelhantes a essas podem ser encontradas em textos das mais diversas culturas e épocas, desde a Antiguidade. Escribas egípcios da época faraônica escreveram coisas assim; o mesmo vale para o historiador romano Tito Lívio (59 a.C. - 17 d.C.; reparem, pelas datas, que ele morreu quando Jesus ainda era só um jovem carpinteiro que nunca tinha saído de Nazaré). Tem coisa errada aí, certo?

Pois é, tem. Um dos estudos mais inusitados e interessantes que li recentemente disseca as falácias por trás do que chama de "ilusão do declínio moral". Nesta virada de ano, parece-me um excelente jeito de destacar que o pessimismo sobre as pessoas ao nosso redor às vezes não passa de minhoca na cabeça.

Ilustração mostra homem caindo em um buraco. A cena é toda retratada em preto e banco. No alto, um buraco circular ilumina parte do quadro. Do buraco, cai um homem de costas, com os braços e as pernas ligeiramente levantadas para cima. A queda parece ser bem longa.
Estudos publicado na revista Nature disseca as falácias por trás do que chama de 'ilusão do declínio moral' - Adobe Stock

A pesquisa sobre o tema, que saiu na revista especializada Nature, é de autoria de Adam Mastroianni, da Universidade Columbia, e Daniel Gilbert, da Universidade Harvard (ambas nos EUA). Os dois se valeram de uma grande massa de dados oriundos de pesquisas de opinião —só as feitas com americanos ouviram 220 mil pessoas, num período que vai de 1949 a 2019. Também há dados de outros países, inclusive o Brasil, embora abrangendo um período bem mais curto, de 1996 a 2007.

A pergunta feita nesses levantamentos é sempre uma variação do seguinte: "Você acha que nas últimas décadas a nossa sociedade ficou menos ética?" ou "Você acha que os valores morais do nosso país estão melhorando ou piorando?". Bem, em cerca de 85% das pesquisas, tanto nos EUA quanto em outros países, a maioria das pessoas respondeu "sim". E, veja só, a resposta afirmativa –sim, as pessoas estão ficando menos éticas– independe da década em que foi feita. Tanto nos anos 1940 quanto nos anos 2010 a probabilidade de alguém concordar com a afirmação era a mesma.

O pulo do gato, porém, foi quando os autores do estudo analisaram outras pesquisas de opinião feitas ao longo de décadas (dos anos 1960 em diante) com perguntas específicas sobre o comportamento ético, como "Ontem, você diria que foi tratado com respeito o dia inteiro?" ou "Você acha que, em geral, as pessoas tentam ajudar quando você precisa?".

Nesse caso, não é possível observar mudança nenhuma ao longo das décadas. O tal do declínio moral evapora —e evaporou também numa enquete feita pelos autores do estudo, na qual perguntaram se o comportamento honesto e gentil estava piorando 1) entre todas as pessoas e 2) entre as pessoas com quem o entrevistado tinha contato diretamente (familiares, amigos, colegas de trabalho). Nesse caso, os participantes respondiam "sim" para a pergunta 1 e "não" para a questão 2 –o que não faz o menor sentido.

O que diabos está acontecendo, afinal de contas? Uma hipótese, escrevem os pesquisadores, é que algum tipo de viés cognitivo demasiadamente humano, que faz a nossa cabeça focar apenas as coisas ruins do presente e pintar o passado em tintas róseas, esteja por trás dessa ilusão.

Fica aqui, portanto, um pensamento encorajador para começar 2024: somos todos seres humanos e, como tal, continuamos tão ruins —e tão bons— como sempre fomos, nem mais, nem menos. Tenha paciência com os outros —e consigo mesmo. Feliz ano novo!

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