Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Punição antissocial é mecanismo por trás do ódio ao padre Júlio

Em sociedades desiguais e violentas, generosidade costuma ser alvo de represália

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Pelo visto, parte considerável da vereança paulistana não tem nada melhor a fazer com seu tempo de mandato do que intimidar um sacerdote que tenta dar alimento a quem tem fome. A declaração de guerra dos vereadores da direita radical ao padre Júlio Lancellotti e ao seu trabalho com o povo de rua é só mais um capítulo da longa tradição de ódio à população de rua no nosso país. Mas também pode ser encaixada num fenômeno muito mais amplo, triste e demasiadamente humano. Anote aí: o nome disso é punição antissocial.

O termo vem de uma grande massa de estudos sobre o xadrez do comportamento humano. São pesquisas que têm implicações importantes para entender como as sociedades evoluem e conseguem se tornar menos ou mais autodestrutivas. Em suma, a punição antissocial parece emergir com força em contextos de desigualdade e desconfiança, nos quais as pessoas se convencem de que é preciso descer o sarrafo nos "bonzinhos".

Padre Júlio Lancelloti concede entrevista sobre aporofobia, a aversão aos pobres. Ele é um homem branco, magro, parcialmente calvo e idoso, de óculos e camisa branca
Padre Júlio Lancelloti concede entrevista sobre aporofobia, a aversão aos pobres - Marlene Bergamo - 18.out.23/Folhapress

Descrições quantitativas desse fenômeno, que você talvez já tenha vivenciado de forma anedótica (ou seja, em situações esporádicas do seu cotidiano), apareceram pela primeira vez em jogos de cooperação econômica. Trata-se de uma ferramenta muito utilizada pelos laboratórios de psicologia social mundo afora.

Imagine, por exemplo, que cada um dos voluntários recrutados por um desses laboratórios recebe cinco notas de R$ 2. Esse dinheiro pode ficar com a pessoa ou pode ser contribuído (no todo ou em parte) para um fundo comum. Nesse fundo, ele vai "render", como se fosse um investimento real, e depois ser dividido entre os participantes.

O jogo pode continuar por várias rodadas e, em algumas variantes dele, as pessoas podem gastar parte do seu dinheiro para punir outros participantes, tirando dinheiro deles, por exemplo.

Repare agora no seguinte. De uma perspectiva exclusivamente individualista, o que faz sentido é ficar com todo o seu dinheiro e deixar que os outros "invistam" no fundo comum, porque você vai receber parte dos "rendimentos" de qualquer jeito. Por outro lado, se (e esse é um "se" enorme, claro), todos investissem seus R$ 10 na brincadeira, os "juros" seriam calculados em cima do montante total e, portanto, todo mundo receberia mais dinheiro. O problema é confiar o bastante nos colegas de jogo para arriscar isso.

Décadas de pesquisa mostraram que:

1) Em países desenvolvidos e com desigualdade relativamente baixa, é mais comum o investimento alto no grupo;

2) Também nesses países, é comum que "disciplinadores" gastem para punir os que não cooperam. É a punição pró-social.

Porém, em países mais desiguais e autoritários, é comum que apareça a punição antissocial: algumas pessoas preferem punir quem contribui "demais" para o fundo comum. "Chega dessa palhaçada de ser bonzinho" parece ser a mensagem passada por tais sujeitos. Adivinhe em qual categoria de país o Brasil costuma cair?

É verdade que os mecanismos mentais por trás da punição antissocial não estão 100% claros. Ela pode ser uma resposta "racional" a ambientes incertos e desiguais, onde a confiança entre os membros de uma sociedade é baixa e as instituições parecem funcionar mal. Pode ser ainda uma tentativa de desnudar certas hipocrisias ou de evitar que os generosos e cooperativos pareçam superiores a quem pune.

E é claro que esse não é o único mecanismo por trás da campanha contra o sacerdote católico. A ascensão de um eleitorado de extrema direita entre evangélicos e católicos conservadores certamente colabora para essa situação lamentável, bem como o quadro de insegurança e degradação no centro de São Paulo. Com medo, as pessoas buscam bodes expiatórios.

São impulsos naturais, infelizmente. Mas cabe aos legisladores não se deixar levar por esse tipo de instinto predatório e autodestrutivo, em especial se batem no peito para se dizer cristãos.

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