Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Camundongo chega perto de se reconhecer no espelho, diz estudo

Em experimento, roedor de laboratório mostra percepção rudimentar de seu reflexo

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Acho que nunca principiei esta coluna com uma citação latina, mas, como há uma primeira vez para tudo nesta vida, eis aqui uma que me parece apropriada: "Natura non facit saltus" – "a natureza não dá saltos". (Favor pronunciar "facit" como "fákit" –ao que parece, o C tinha som de K entre os romanos.)

A frase exprime a ideia de que, nos processos naturais, a gradualidade costuma imperar. E isso talvez seja particularmente verdadeiro no caso dos seres vivos. Toda vez que temos a impressão de encontrar um abismo entre certas espécies e outras, o que quase sempre acontece é que não observamos as coisas com o devido cuidado, deixando passar os processos graduais que correspondem a uma ponte por cima daquele abismo.

Pense, por exemplo, na capacidade de se reconhecer no espelho. Ou você sabe que aquela imagem na superfície polida "é você", ou não sabe, certo? O meio-termo aí não faz muito sentido. A menos, é claro, que o sujeito diante do espelho seja um camundongo.

Camundongo em um ambiente fechado em formato de círculo
Camundongo em experimento de neurociência - Agência Fapesp

Uma série de experimentos conduzidos por pesquisadores ligados à Universidade do Texas em Dallas (EUA) indica que o pequeno roedor tem alguns dos elementos cognitivos necessários para saber quem está aparecendo diante dele naquele objeto esquisito –mas não na mesma intensidade ou complexidade vista em outros bichos que normalmente passam no "teste do espelho".

Trata-se de mais uma reviravolta numa área de pesquisa que, outrora, parecia mostrar que a natureza dava saltos, sim senhor. O êxito no teste do espelho já chegou a ser retratado como um forte indicativo de que determinada espécie era dona de uma cognição complexa e de um senso relativamente elevado de autoconsciência, quiçá muito similar ao dos seres humanos.

Os primeiros a serem aceitos no clube do reconhecimento no espelho foram os grandes símios, como os chimpanzés. Depois vieram golfinhos e elefantes, notoriamente bichos "sabidos", como dizem as histórias infantis. E as pegas, aves parentas dos corvos. E um peixinho, o bodião-limpador, como já contei por aqui. De repente, o clube estava ficando meio grande demais.

Em artigo na revista especializada Neuron, a equipe do Texas, formada por Jun Yokose, William Marks e Takashi Kitamura, usou, em camundongos, uma variante do método clássico para induzir o reconhecimento no espelho. A chave da metodologia é usar tinta para fazer uma marca bem visível no corpo do bicho.

Se houver um espelho na frente do animal e ele o usar para inspecionar aquela "pinta" que não estava ali antes, é sinal de que conseguiu ligar os pontos para perceber que a imagem que está vendo é a de seu próprio corpo. No caso do novo estudo, o trio de pesquisadores aplicou tinta branca na testa dos roedores depois de anestesiá-los, já que a linhagem de camundongos de laboratório com a qual trabalharam tem pelagem escura.

Em outro grupo dos bichos, porém, eles usaram tinta escura como controle –para checar se apenas a aplicação da tinta, e não a visão dela no espelho, poderia ter algum efeito também. E eles também variaram a quantidade de tinta aplicada na testa das cobaias.

Os resultados foram um bocado interessantes e complicados. Em suma, o que acontece é que há uma combinação entre estímulo tátil da presença da tinta e a visão no espelho. Os camundongos com mais tinta na testa tendiam a ficar se limpando mais com as patinhas, ao ver seu reflexo no espelho. Mas só a presença da tinta, se ela não fosse vista, não era suficiente, porque os bichos com a testa pintada de preto só começavam a se limpar quando uma pinta branca era colocada em cima da tinta escura!

Além disso, a coisa só funcionava quando os animais tinham passado algum tempo se familiarizando com o espelho previamente, e se eles não tinham sido criados em isolamento social. A vida em grupo e o contato anterior com o espelho parecem ser essenciais para que algum nível de percepção de si próprio a partir da imagem possa emergir.

Por outro lado, os bichos não parecem ser capazes de usar o espelho para inspecionar de forma ativa partes do corpo que não ficariam visíveis normalmente, como as ancas ou os dentes –algo que nós e os grandes símios fazemos com facilidade. Seu autorreconhecimento visual, dizem os pesquisadores, seria "implícito", e não explícito, como o nosso. Ainda assim, é um indício de que, no caso do espelho, como em tantos outros, o abismo entre as formas de vida tem muito de ilusório.

Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de "Homo Ferox" e "Darwin sem Frescura", entre outros livros

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