Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu Itália

Comparar queda de Roma com atual 'crise do Ocidente' é maluquice

Extrema direita viaja na maionese ao dizer que cenário atual repete Antiguidade

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Por razões que a própria razão desconhece, volta e meia os influencers doidões da extrema direita, tanto os nacionais quanto os importados, desenvolvem uma fixação pelo Império Romano. (Minha hipótese de trabalho é que eles têm fetiche por couraças de bronze com mamilos cenográficos, mas ainda não estou de posse de dados suficientes para corroborá-la.) Fato é que esse povo a-do-ra traçar paralelos entre a queda de Roma e a situação atual do "Ocidente". Uma de tais figuras, professor de filosofia, declarou esses dias, com a maior seriedade do mundo, que o Império Romano teria ido para o saco pelos seguintes motivos:

1) imigração descontrolada;

2) queda da natalidade;

3) perda do sentimento religioso da população.

(Talvez existissem mais motivos na lista, mas confesso que não tive suco gástrico suficiente para continuar digerindo o vídeo do sujeito.)

O debate sério sobre o fim do domínio romano é (como o leitor deve imaginar) complicado e repleto de visões divergentes. Mesmo levando isso em conta, porém, dá para afirmar sem sombra de dúvida que as "causas" citadas pelo fulano em questão não fazem o menor sentido.

Complexo com ruínas das Termas de Caracalla, construído no fim do período de auge do Império Romano, na capital italiana
Complexo das Termas de Caracalla, construído no fim do período de auge do Império Romano, na capital italiana - Remo Casilli/Reuters

Começando pelo segundo fator –simplesmente porque ele é o mais fácil de abordar–, eu gostaria muito de saber de onde esse povo tira esses supostos dados sobre a taxa de natalidade da população imperial.

Sei que outro fetiche de algumas pessoas é a ideia de que os romanos seriam os burocratas supremos, armazenando dados sobre absolutamente tudo o que se passava em seus domínios (um desses doidinhos já bateu o pé comigo dizendo que, se Jesus tivesse existido mesmo, certamente os registros de seu julgamento diante de Pilatos teriam sido preservados).

Ocorre, porém, que nada nem vagamente parecido com uma taxa média de natalidade jamais foi anotado, até onde a gente sabe, por algum escriba dos Césares. Há zero informações sobre uma suposta diferença entre o número de filhos por mulher no auge de Roma (por volta de 100 d.C., digamos, a era de Trajano e Adriano) e o momento em que o império começou a balançar para valer, depois do ano 400. E tentar medir isso indiretamente, usando métodos arqueológicos, envolve um Coliseu inteiro de incertezas estatísticas.

Também não deu para entender o item 3, sinceramente. O período de declínio imperial na Europa Ocidental envolve justamente o momento em que o cristianismo se torna religião oficial. Não tem ninguém virando ateu ali –apenas a substituição do politeísmo ancestral por uma nova fé, bastante militante e segura de si.

Quanto ao item 1, é verdade que grupos germânicos (como os célebres visigodos e ostrogodos) foram se infiltrando no império. Mas o caldo só desanda mesmo quando alianças dos chefes desses grupos com os próprios generais e imperadores romanos os transformam em forças militares independentes –as quais, mais tarde, resolvem arrancar nacos do império para si próprias.

Por fim, toda essa conversa sobre fatores de declínio romanos e sua semelhança com o "Ocidente" atual convenientemente esquece… o Império Romano do Oriente. Sediado em Constantinopla (atual Istambul), que enfrentou quase todas as mesmas mudanças do lado ocidental dos domínios de Roma e sobreviveu durante "só" mais um milênio inteiro. Dá para perceber a contradição nos argumentos?

Eis por que, se você vir gente internet afora dizendo coisas parecidas com a lista acima sobre Roma, pode colar tranquilamente o selinho de "100% picaretagem" na testa do cidadão. "Causa finita est", como diziam os Césares.

Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de "Homo Ferox" e "Darwin sem Frescura", entre outros livros

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