Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Unir saber antigo e ciência é chave para deter crise ambiental

Projetos no Brasil, como o que salvou pirarucus, mostram que a sinergia funciona

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Eis aqui uma boa notícia da qual provavelmente você não ouviu falar. O pirarucu (Arapaima gigas), peixe amazônico que muitas vezes alcança os 2 m de comprimento e algumas centenas de quilos, chegou a ter sua pesca totalmente proibida no país por causa do excesso de capturas. Nos últimos anos, porém, a população do gigante conseguiu se recuperar de maneira excepcional, crescendo 425% em 11 anos nos lagos em que passou a ser protegida no Brasil.

Como esse milagre aconteceu? Por uma combinação de conhecimento científico de ponta e envolvimento direto das comunidades tradicionais que incluem o bichão na sua dieta.

Pescador com pirarucu em reserva de desenvolvimento sustentável no estado do Amazonas. O peixe está no barco do pescador e tem o tamanho de uma pessoa, com corpo comprido
Pescador com pirarucu em reserva de desenvolvimento sustentável no estado do Amazonas - Ricardo Oliveira/AFP

A interação de longa data de pescadores indígenas e ribeirinhos com a espécie ajudou no desenvolvimento de técnicas de contagem de indivíduos. Mais de mil comunidades da região se organizaram para proteger áreas importantes para a reprodução do peixe da pesca comercial de larga escala. E, por fim, foram estabelecidas cotas de captura sustentáveis, que podiam chegar a 30% dos indivíduos adultos (o que, convenhamos, ainda dá uma quantidade portentosa de filé de peixe). Resultado: ao menos por enquanto, não há mais razão para temer o sumiço do saboroso gigante.

A experiência bem-sucedida é um dos "hope spots" (literalmente "pontos de esperança") socioecológicos destacados num estudo que acaba de sair na revista especializada Nature Ecology & Evolution. O trabalho é assinado por um timaço de biólogos, arqueólogos, antropólogos e líderes indígenas (das etnias kuikuro e waujá, ambas do Alto Xingu). Sintetizando uma massa gigantesca de informações, a pesquisa mostra duas coisas um bocado importantes: 1) existe uma ligação muito estreita entre biodiversidade e diversidade cultural no Brasil; 2) é preciso usar esse elo para olhar para o futuro e enfrentar a crise ambiental que atravessamos de uma maneira que beneficie, ao mesmo tempo, as pessoas e a biodiversidade.

Coordenado por Carolina Levis, ligada à UFSC e à Universidade de Princeton (EUA), e assinado também por Maíra Padgurschi, da Unicamp e do Laboratório Nacional de Biorrenováveis, entre outros colegas, o trabalho começa destacando um fato crucial: a riqueza biológica dos ecossistemas brasileiros tem uma raiz "cultural" e humana.

De fato, não se sustenta a ideia de que por aqui existiam vastíssimas extensões de "natureza intocada" antes da chegada dos europeus. A análise cuidadosa da distribuição de espécies vegetais e animais na região amazônica, na mata atlântica e em outros biomas mostra o impacto de longo prazo da atividade humana.

Isso vale no caso da domesticação e do cultivo de dezenas de espécies de plantas, mas também para o próprio chão (com a criação do solo artificialmente mais fértil conhecido como terra preta) e para espécies "selvagens", mas importantes para o ser humano, que se tornaram bem mais comuns do que o esperado. Trocando em miúdos, faz vários milênios que as florestas brasileiras estão mais para quintais ou jardins.

As populações tradicionais, por meio do que os cientistas chamam de níveis intermediários de perturbação (derrubadas, roças mistas, uso controlado do fogo etc.), conseguiram "humanizar" esses ambientes mantendo taxas relativamente altas de biodiversidade. É o caso dos incêndios controlados de porções do cerrado feitos nos territórios dos indígenas xavante, por exemplo –nesses locais, paradoxalmente, a diversidade da vegetação nativa é mais bem preservada, já que o manejo indígena leva em conta a adaptação natural do cerrado à presença do fogo.

Os autores do estudo argumentam que um casamento entre essas interações tradicionais entre pessoas e biodiversidade, de um lado, e o conhecimento científico de ponta, do outro, é essencial se quisermos um modelo de desenvolvimento que supere a velha mania brasileira de botar árvore abaixo indiscriminadamente e jogar boi nos escombros. (Essa última frase, claro, é minha: nada tão pouco polido iria parar num artigo científico.) O exemplo do pirarucu, e vários outros, mostram que não se trata de simples utopia.

Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de "Homo Ferox" e "Darwin sem Frescura", entre outros livros

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