Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Capacidade de acumular inovações culturais começou há 600 mil anos, diz estudo

Estudo afirma que época marcou surgimento dos primeiros instrumentos de fabricação complexa e antecede origem do Homo sapiens

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É preciso ter sempre muito, muito cuidado quando resolvemos sair à cata de uma única característica que supostamente "nos tornou humanos" ao longo da trajetória evolutiva dos nossos ancestrais. Não é de hoje que quem resolve citar um traço desses acaba quebrando a cara, porque basta escarafunchar com mais calma para descobrir vários ingredientes mágicos do tipo em outras espécies. (Não gosto de imaginar a cara de Aristóteles, que dizia que o ser humano é um animal político por natureza, se soubesse da sofisticação politiqueira e maquiavélica dos chimpanzés, por exemplo.)

Tendo dito isso, porém, é verdade que alguns candidatos a ingrediente secreto da "receita humana" ainda param de pé. Um novo estudo investiga um dos mais interessantes: a capacidade de produzir cultura cumulativa.

Convém, é claro, tentar explicar que diabos se quer dizer com essa expressão. Por vivermos numa sociedade que usa a escrita para tudo (por enquanto, pelo menos...), receio que tenhamos ficado mal-acostumados, achando que cultura cumulativa é algo que se aplica apenas ao que conseguimos registrar em livros ou, vá lá, em cadernos de receitas da família.

A imagem mostra uma flauta de madeira antiga, com uma aparência rústica e desgastada. A flauta possui três buracos visíveis. A madeira parece envelhecida e apresenta algumas rachaduras e marcas de uso.
Flauta pré-histórica - Wikimedia Commons

OK, é verdade que nenhum dos que me leem agora terá o privilégio ou o desprazer de encontrar Hamurábi, Cunhambebe ou Marie Curie em carne e osso. Mas sabemos de muita coisa sobre esses sujeitos, que hoje são menos do que pó, graças ao que foi escrito por eles ou sobre eles. E o mesmo vale para receitas de bolo, manuais de montagem de um Lego da Estrela da Morte ou de um carro elétrico.

Entretanto, as sociedades humanas já eram capazes de cultura cumulativa muito antes que a escrita fosse inventada, ou em sociedades que não a usavam. Bastava que alguém ensinasse qualquer coisa complicada de fazer ou de imaginar para outra pessoa; que esse aprendiz, por sua vez, acrescentasse algo, útil ou inútil que fosse, ao que aprendeu; e que, por fim, repassasse essa chama da inventividade para outro vivente (ou conjunto de viventes).

Quando isso teria começado? É claro que o ato de acumular conhecimento, por si só, pode ser completamente invisível para quem viveu séculos depois dele. Mas faz muito tempo que nossos ancestrais têm deixado por aí "fósseis culturais" muito instrutivos e praticamente imperecíveis chamados instrumentos de pedra.

Foi com base neles que uma dupla de pesquisadores, Jonathan Paige e Charles Perreault, respectivamente da Universidade de Missouri e da Universidade Estadual do Arizona (EUA), buscaram medir a capacidade de desenvolver cultura cumulativa a partir de uns 3 milhões de anos atrás. Ou seja, quando os primeiros instrumentos de pedra aparecem no registro arqueológico em associação com membros da linhagem humana (na época, australopitecos, bípedes com até 1,50 m de altura e cara de chimpanzé magrelo).

O método simples e engenhoso deles foi contar o número de passos necessários para produzir as ferramentas, comparando-o com instrumentos feitos por outras espécies.

Como era de se esperar, as coisas demoram para pegar no tranco. Até 1,8 milhão de anos atrás, o número de passos para produzir as ferramentas dos nossos ancestrais ia de 2 a 4; passa a ser de 4 a 7 até 600 mil anos atrás.

A complexidade só decola, com um total entre 5 e 18 passos distintos de produção, depois de 600 mil anos atrás, num nível que, para os pesquisadores, deixa de depender só do que cada indivíduo seria capaz de inventar sozinho e passa a depender da transmissão cultural cumulativa.

Um dado fascinante é que, se as estimativas deles estiverem corretas, a capacidade não seria exclusiva do Homo sapiens, mas incluiria ainda outros membros da nossa linhagem descritos como "arcaicos" —os neandertais, por exemplo. Resta saber o que teria impulsionado o processo, é claro. Um mistério de cada vez.

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