Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Estudo sugere que ancestrais da humanidade quase desapareceram do planeta 900 mil anos atrás

Teríamos ocupado a posição nada confortável de uma baleia-azul ou mico-leão-dourado dos dias de hoje

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Certas ideias, como dizia o Bruxo de Cosme Velho, merecem ser incutidas na alma à força da repetição. Eis uma delas, que volta e meia aparece nesta coluna. É muito fácil esquecer como a presença avassaladora dos seres humanos como espécie dominante deste terceiro planetinha dos domínios do Sol é um fenômeno recente e frágil, ao menos do ponto de vista das escalas de tempo geológicas e cósmicas. Façamos, primeiro, algumas contas.

A linhagem de grandes símios que desembocou no Homo sapiens provavelmente se separou do ramo da Árvore da Vida que daria origem aos atuais chimpanzés, nossos parentes vivos mais próximos, há cerca de 7 milhões de anos. Já a nossa espécie é muito mais recente, com uma idade que alcança, no máximo, algo como 300 mil anos.

Reconstrução do crânio de um fóssil de 'Homo sapiens', que sobreviveu após seu antepassado quase ser extinto
Reconstrução do crânio de um fóssil de 'Homo sapiens', que sobreviveu após seu antepassado quase ser extinto - Philipp Gunz - 7.jun.17/MPI EVA Leipzig/via Reuters

Durante praticamente todo esse tempo, nunca deixamos de ser, no fundo, só mais uma espécie de mamífero de grande porte. Durante o fim da Era do Gelo, ganhamos uma distribuição geográfica de dimensões mundiais, é verdade, mas isso não era muito diferente do que já tinham alcançado outros predadores cosmopolitas, como lobos e leões (ambos presentes em quase todas as regiões do Velho e do Novo Mundo antes que nós os encurralássemos).

Ou seja, é bem possível que não houvesse muito mais do que 1 milhão de pessoas no mundo inteiro até meros 10 mil anos atrás. Foi só a partir de uns dez milênios antes do presente (o proverbial piscar de olhos, do ponto de vista da Terra, e mesmo da nossa história evolutiva separada) que começou, pouco a pouco, o processo de crescimento populacional e aumento da complexidade tecnológica que nos transformou na força geológica que somos hoje.

As razões para esse sucesso quase milagroso são múltiplas, embora uma das mais importantes decerto seja a domesticação de plantas e animais. O que a gente não costuma levar em consideração, porém, é que, antes que o avanço explosivo da humanidade começasse, sofríamos de uma fragilidade rigorosamente idêntica à dos demais mamíferos de grande porte diante dos vaivéns da evolução. E, se um novo estudo estiver correto, nossos ancestrais bateram na trave da extinção antes mesmo que o Homo sapiens existisse.

Imagine a situação: um mundo em que apenas cerca de mil indivíduos dessa espécie de humanos ancestrais eram viáveis do ponto de vista reprodutivo. Em essência, é isso o que diz um trabalho que acaba de sair na revista especializada Science, uma das maiores do mundo.

Coordenado por Haipeng Li, da Universidade da Academia Chinesa de Ciências, o estudo analisou o DNA das pessoas vivas hoje para estimar qual seria a diversidade genética dos ancestrais da humanidade ao longo da nossa trajetória evolutiva. Dá para fazer isso porque há uma correlação entre variações do DNA e população: quanto mais gente se reproduz, maior a chance de aparecerem mutações no DNA que se multiplica, grosso modo.

Haipeng e seus colegas estimam que, 900 mil anos atrás, houve uma redução populacional drástica (talvez da ordem de 90%) na linhagem africana do gênero Homo (o nosso) que mais tarde deu origem ao H. sapiens e aos nossos primos extintos mais próximos, os neandertais e denisovanos. Durante dezenas de milhares de anos, teríamos ocupado a posição nada confortável de uma baleia-azul ou mico-leão-dourado dos dias de hoje.

A ideia ajudaria a explicar a relativa falta de fósseis de hominínios (a nossa linhagem) nessa época. Se a proposta estiver correta, trata-se de mais um indício de como foi contingente a nossa escalada rumo ao domínio planetário. Convém enxergá-la com muito menos arrogância do a que envergamos até agora.

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