Renata Mendonça

Jornalista, comenta na Globo e é cofundadora do Dibradoras, canal sobre mulheres no esporte.

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Renata Mendonça
Descrição de chapéu Mundial de Clubes 2020

Da 1ª árbitra a Edina, o 'volta para a cozinha' ficou obsoleto

Trio de mulheres comandou arbitragem de partida do Mundial de Clubes no domingo

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Quando Edina Alves Batista, Neuza Back e Mariana de Almeida passaram pelo túnel do estádio Al Rayyan para subir ao campo, elas não deixavam para trás apenas a distância percorrida ali dentro com os pés. Não é fácil andar para frente quando a vida inteira tentaram empurrá-la para trás.

Se a vida delas fosse um filme, o som de fundo para subir aqueles degraus teria desde os gritos de "volta para a cozinha", "seu lugar é no tanque", até o "mulher não pode apitar jogo de alto nível".

Essa última foi proferida pelo hoje técnico da seleção brasileira, Tite, em 2005, em crítica à árbitra Silvia Regina. E já que estamos voltando no tempo, vale ir ainda mais longe para entender o peso e a história que Edina, Neuza e Mariana carregaram ao se tornarem o primeiro trio feminino a apitar um jogo de uma competição masculina adulta (o jogo entre Al Duhail e Ulsan Hyundai no Mundial de Clubes) organizada pela Fifa.

Na década de 1970, o Brasil vivia o auge como "o país do futebol", e também o auge da ditadura militar. Foi um pouco antes disso, em 1967, que Lea Campos se inscreveu no curso de árbitros de futebol da Federação Mineira.

A nota do Jornal do Brasil da época dizia: "Lea Campos, solteira, 22 anos, 1,74 de altura, 91 de busto e 92 de quadris, depois de ser Rainha do Carnaval desta Capital, resolveu agora ser juiz de futebol". Era o começo de uma longa briga com o então presidente da CBD (Confederação Brasileira de Desportos), João Havelange, para obter permissão de apitar jogos.

A ousadia de Lea fez com que a Federação Mineira de Futebol procurasse formas de impedir aquele "absurdo" de acontecer, incluindo justificativas biológicas.

Disseram que a "estrutura óssea das mulheres era inferior à dos homens", inventaram que a menstruação poderia prejudicar a mulher em campo. Frases que já não faziam sentido em 1967, mas continuaram sendo usadas quase 40 anos depois numa tentativa de barrar a arbitragem feminina.

"Vou falar uma coisa como profissional de educação física: o torque da mulher, a força muscular e a velocidade dela fazem com que ela não possa acompanhar os homens. Não é preconceito, falo isso até com um certo constrangimento", afirmou Tite em 2005.

A árbitra Edina Alves Batista e as assistentes Neuza Back e Mariana de Almeida foram responsáveis pela arbitragem de Al-Duhail x Ulsan Hyundai, partida válida pela disputa do quinto lugar no Mundial de Clubes da Fifa, no Qatar
A árbitra Edina Alves Batista (ao centro) e as assistentes Neuza Back (à dir) e Mariana de Almeida foram responsáveis pela arbitragem de Al-Duhail x Ulsan Hyundai, partida válida pela disputa do quinto lugar no Mundial de Clubes da Fifa, no Qatar - Jaafar Karim - 7.fev.21/AFP

Se na época ele já se sentia constrangido, imagino como deve se sentir agora vendo Edina Alves Batista alcançar o mundo com a força e velocidade de uma mulher no jogo dos homens.

Lea Campos lutou tanto que conseguiu emitir seu certificado de árbitra, foi convidada para apitar um Mundial de futebol feminino no México em 1971 e também atuou em jogos masculinos pelo Brasil. Silvia Regina, a primeira mulher a apitar um jogo de Série A do Campeonato Brasileiro, em 2006, também quebrou barreiras enquanto ouvia bobagens como essas repetidas por Tite.

Edina e Neuza existem hoje porque Lea Campos, Silvia Regina e tantas outras resistiram lá atrás. Foram muitas as que vieram antes abrindo portas para que o caminho daquele túnel no Mundial pudesse ser percorrido por elas.

A ex-árbitra Lea Campos, pioneira nos campos de futebol
A ex-árbitra Lea Campos, pioneira nos campos de futebol - Lea Campos no Facebook

Esse é só mais um capítulo de uma história que começou há algumas décadas, porque uma mulher ousou desafiar a lógica. Sair da cozinha. Essa é a história das nossas vidas. Nada nos foi dado, tudo foi conquistado.

Chega a ser engraçado ouvir, em 2021, o mesmo "volta para a cozinha" do passado. Não percebem que essa batalha eles já perderam. Mulheres são jogadoras, árbitras, treinadoras, comentaristas, narradoras, engenheiras, astronautas, presidentes que comandam países até.

Saímos do lugar que escolheram para nós. Agora quem decide o que vamos ocupar somos nós mesmas.

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