É humorista português e um dos criadores do coletivo Gato Fedorento, referência humorística em seu país. Escreve aos domingos.
Maus-tratos a livros
A minha mulher é uma ótima mãe. A cacofonia que estas duas últimas palavras produzem foi propositada: eu pretendo deixar clara a qualidade dela enquanto mãe, e quero ainda que a palavra "mamãe" invada dissimuladamente a imaginação do leitor.
A mãe que também é mamãe é mais completa. É responsável mas também é terna, preocupa-se mas também brinca. É adulta mas sabe ser infantil. É uma pessoa isenta de maldade.
Pois bem, essa mesma mulher é facínora no que toca a livros. Não posso calar mais essa denúncia. Na mesma medida em que é extremosa para as minhas filhas, ela é cruel para Dostoiévski. Ou, neste caso, Dostoiév, porque ela colocou uma mancha de café um cima do "ski", no meu exemplar de "Crime e Castigo".
A minha mulher chama "ler" àquilo a que a maior parte das agências de inteligência chama "terrorismo".
Dentro dos livros da minha biblioteca há areia de vários continentes. As capas têm mais vestígios de gordura do que mesa de boteco. O nosso "O Velho e o Mar" caiu no mar, e por isso ficou tão grosso quanto o "Guerra e Paz", que aliás parece ter sobrevivido a várias guerras.
Luiza Pannunzio/Folhapress |
O livro tem essa coisa boa de colocar informação ao nosso dispor, mas a minha mulher parece acreditar que ele só conta o que sabe se for torturado.
Começa por lhe partir a lombada, para ele ficar a saber quem manda. Muitas vezes, dobra-o em dois, como se fosse um caderno. E acaba por deixá-lo todo marcado: para assinalar o ponto onde vai, faz uma dobra na página muito maior do que o necessário, como se se preparasse para fazer um avião de papel.
Suponho que isso faça parte de uma estratégia de intimidação. Se o livro tem orelha, usa-a como marcador, partindo-a. Eu introduzo discretamente um marcador em cada livro, para evitar essa chacina. Não adianta.
"Marcar com a orelha é mais fácil. Não quero ficar a procurar o teu estúpido marcador. Nunca sei onde está." Se eu protesto que não é assim tão difícil procurar o marcador, fica furiosa.
Na verdade, ela fica tão furiosa que sente necessidade de esfriar a cabeça agitando um abanico. Normalmente, esse abanico é o marcador que eu ponho dentro do livro.
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