Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Português atravessa estrada em Londres

Para nós, assim como para brasileiros, as regras são, digamos, uma referência

Nesta semana aconteceu de novo: eu estava noutro país, aproximei-me de uma faixa de pedestres e havia dois grandes grupos de cidadãos estrangeiros, de cada lado da estrada, todos muito civilizados, esperando que o sinal ficasse verde.

Na estrada, nem um carro. Passaram alguns segundos. E então, evidentemente, eu atravessei sozinho. Primeiro, os estrangeiros sustiveram a respiração. O que fazia aquele bárbaro? Com que desfaçatez transgredia a regra, desrespeitava a autoridade da luz vermelha? Quereria ele fazer ruir toda a civilização? E por que é que ele era tão bonito? Estrangeiros sabem analisar situações.

Mais alguns segundos passaram. Depois, primeiro hesitantes mas logo decididas, as pessoas civilizadas começaram a atravessar a estrada ignorando o sinal. Havia surpresa nelas mas, pareceu-me, também aquela forma de alegria que só a fruição da liberdade proporciona. E depois veio um carro e atropelou três. Mentira. Correu tudo bem.

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Luiza Pannunzio

E não foi a primeira vez que eu libertei estrangeiros do jugo da luz vermelha em estradas desertas. Quase sempre que atravesso estradas noutros países sou Simão Bolívar de pedestres.

Não é uma característica exclusiva de portugueses. Uma vez, em São Paulo, eu conversava com um amigo brasileiro sobre a quantidade de carros com todos os vidros filmados.

"Em Portugal isso é proibido", disse eu. "É, aqui também", disse ele. Nunca ficou tão claro para mim que, de fato, portugueses e brasileiros são povos irmãos. Para nós, as regras são, digamos, uma referência. Claro que a gente quer cumpri-las —e cumpre, a maior parte das vezes. Mas desconfiamos delas, adaptamo-las, tornamo-las um pouco mais humanas. A rigidez não nos agrada.

Dizem que Júlio César, o imperador romano, terá escrito, a propósito das tribos que habitavam o território que hoje corresponde a Portugal: "Há, nos confins da Ibéria, um povo que nem se governa nem se deixa governar". Foi muito perspicaz da parte dele, até porque na altura não havia faixas de pedestres.

Podia ter dito o mesmo de um certo povo que vive agora nos confins da América do Sul. À circunstância admirável de a gente não se deixar governar, ele juntou o problema: eles também não se governam. Porque isso do temperamento rebelde à autoridade, realmente, não é só poesia.

Mas uma coisa é certa: o fascismo não combina conosco.

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