Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ricardo Araújo Pereira

Diferentes tons de ridículo

O celular tem convicção de que eu deveria despedir-me: Um abraço do Ridículo

Às vezes decido acabar um SMS escrevendo: "Um abraço do Ricardo". Sucede que, sempre que começo a escrever o meu nome, o corretor automático sugere a palavra "ridículo".

Até hoje nunca aceitei a sugestão, mas o celular mantém a convicção de que eu deveria despedir-me dizendo: "Um abraço do Ridículo". Portanto, confirma-se: os smartphones conhecem-nos mesmo muito bem.

Não é difícil. O fato de andar sempre comigo e de assistir às minhas pesquisas no Google faz com que o celular obtenha uma ideia bastante precisa acerca de quem eu sou. Ridículo é um resumo muito perspicaz. Anda assim, há alguns pormenores que ele desconhece —e que ajudariam a compor e reforçar esse retrato. Permitam-me que vos revele um deles, para edificação de todos.

Ilustra da Luiza Pannunzio para Ricardo Pereira
Luiza Pannunzio

Quando, nas aulas de latim, foi preciso aprender a primeira declinação, o professor dispôs os casos pela ordem do costume (nominativo, vocativo, acusativo, genitivo, dativo, ablativo) e depois escreveu as terminações (singular: a, a, am, ae, ae, a; plural: ae, ae, as, arum, is, is).

E então ocorreu-me que um bom modo de memorizar as desinências seria recitá-las ao som da música infantil "A Machadinha". Foi o que fiz. "A, a, am" era o início da cantiga. "Ae, ae, a" correspondia ao verso "minha machadinha". E por aí fora. Resultou.

Entre a primeira declinação e a "Machadinha" não havia outra semelhança a não ser o fato de uma começar por "A, a, a" e outra por "a, a, am". Ambas eram difíceis de compreender: eu estranhava igualmente que, por um lado, as palavras tivessem uma forma diferente consoante a função que desempenhavam na frase e, por outro, que alguém quisesse cantar sobre uma machadinha que, não se sabia bem como, pulava para o meio da rua.

A voz feminina que cantava na Machadinha acabava a dizer que havia de ir à roda escolher o seu par, que era um rapazinho chamado José. O verso seguinte dizia: "Chamado José, chamado João". Tratava-se, portanto, de um rapazinho que, como as palavras na língua latina, mudava de designação com facilidade.

Resumindo, quando o professor me perguntava pela forma da palavra rosa no genitivo plural, eu cantava mentalmente a Machadinha até a parte "quem te pôs a mão sabendo" e respondia "rosarum".

O professor, desconhecendo o logro que decorria à sua frente, dizia "muito bem". Mas eu não conseguia evitar corar um bocadinho. E foi assim que estudei latim. Um abraço para todos do

Ridículo.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.