Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu

Uma série de séries

Antigamente, a gente ligava a TV, via um episódio, desligava, esperava uma semana

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Um dos grandes mistérios do nosso tempo é este: há programas de televisão em que pessoas cozinham e programas em que pessoas comem, mas não há programas em que pessoas fazem a digestão. Acompanha-se a confecção da comida e a sua posterior ingestão. Mas se descura de uma das fases mais prazerosas do processo. 

No “MasterChef” se cozinha e se come, mas não se digere. Talvez isso faça sentido nas versões estrangeiras do programa, mas sempre que o “MasterChef” é protagonizado por falantes de português, essa lacuna sente-se. Quem fala português não se limita a comer, a gente também gosta de falar sobre comida. Sendo duas coisas diferentes, na verdade são a mesma. A língua portuguesa tem um valor nutritivo que as outras não têm. Creio que é possível engordar a falar de comida em português. Vai uma linguicinha? E se amanhã fizéssemos um costelão? Boa sorte a traduzir estas perguntas para inglês, francês ou alemão. 

Eles sabem (vagamente) o que é linguiça e costela. Mas nunca hão de saber o que é uma linguicinha e um costelão. Sem esses nomes, o sabor é diferente. E falar de comida, em português, enche. Já tenho tomado refeições com gente que fala outras línguas e nunca vi nada parecido. Numa mesa de falantes de português, come-se, recordam-se refeições passadas e projetam-se refeições futuras. A gente ama através da comida —e é um amor bruto, que é o único amor que vale a pena. Dizemos coisas que, apesar de carinhosas, estão bastante próximas do universo do crime. Por exemplo: “Você não sai daqui sem provar este vatapá”. Isto é vocabulário de sequestrador. E, no entanto, é ternura.

Há um título na ilustração "Da série: não sei que série assistir". Na imagem, há uma mão segura um controle remoto de tv e nele está escrito "Dúvida digital HD"
Publicada neste domingo, 8 de setembro de 2019 - Luiza Pannunzio/Folhapress

Outro mistério televisivo é a profusão de séries. Antigamente, a gente ligava a televisão, via um episódio, desligava, esperava uma semana, via outro episódio. Agora a gente liga a Netflix, vê 13 episódios, muda para o Hulu, vê outros 13, põe no Amazon Prime, vê mais 26. São muitas séries, sobre tudo. Às vezes parece que metade do mundo está a escrever e produzir séries e a outra metade está a vê-las de seguida. 
Falta uma série sobre gente que vê séries, mas tenho a certeza de que está para sair. E, no entanto, não há ainda uma série sobre falantes de português que, depois de terem comido uma feijoada, recordam uma 
moqueca capixaba que comeram em 1987 e planejam o acarajé que vão fazer para o jantar do dia seguinte.

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