Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ricardo Araújo Pereira

Tele-humanidade

Na prática, ninguém gosta de calor humano

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Descobrir o significado de frases que eram comuns há uns 20 anos é agora trabalho de historiadores. 
Por exemplo, “discar um número”, expressão oriunda do longínquo tempo em que os números, num telefone, figuravam num disco. 

Era o tempo em que, quando o telefone tocava, perguntávamos “quem será?”, porque o nome de quem contatava não estava escrito no mostrador (até porque não havia nenhum mostrador). 

Mesmo algumas frases que se mantêm, tais como “se pretende informações, aperte 1”, são resquícios de um tempo em que as teclas do telefone se apertavam —verbo que hoje é exagerado, uma vez que, em geral, nem há teclas nem, em rigor, se aperta uma imagem. 

Ah, fascinantes arqueologias linguísticas! Todas elas relativas, curiosamente, ao universo dos telefones. A humanidade resolveu desenvolver o telefone com um empenho que não dedicou a qualquer outro objeto. Isso se deve, provavelmente, ao fato de a humanidade ter descoberto que não gosta de calor humano. 

Na ilustração em linhas pretas e fundo branco, um homem está sentado em uma poltrona, ele segura um copo em uma mão e um celular na outra. No colo dele, há um pedaço de pizza em um prato descartável. No chão, várias coisas espalhadas (garrafa, pesos para exercício físico, controle remoto, livro, tênis e notebook). No fundo, há uma luminária.
Luiza Pannunzio/Folhapress

Toda a gente preza calor humano em teoria, mas na prática ninguém o estima. Isso é especialmente evidente quando —e este é um dos casos em que a crueza do exemplo é desculpada pela pertinência da observação— quando, eu dizia, nos sentamos na privada e a argola do assento ainda está morna por causa do utilizador que nos antecedeu. 

Ninguém aprecia a sensação e, no entanto, aquilo que nos repugna não pode ser definido de outra forma: é, sem dúvida nenhuma, calor humano.

Sucede então que a humanidade não gosta de calor humano, mas gosta de frieza humana. Nada contra o contato com outros seres humanos, desde que seja à distância. Donde, o telefone. 

A melhor qualidade de um produto é, aliás, oferecer ao consumidor a possibilidade de não sair de casa. Trabalhe a partir de casa, adquira esse sistema de cinema em casa, agora já pode ir à academia sem sair de casa. 

O que significa que, além do telefone, a casa também mudou muito. Antigamente, o que se valorizava eram os pretextos para sair de casa. Aliás, sair de vez em quando de casa era uma condição essencial para suportar melhor a vida em casa. 

Tendo em conta a nova realidade, não sei para onde vai o mundo. Mas, em princípio, é para casa.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.