Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Espelho meu

Como mostra o mito da Medusa, humor é contraintuitivo e nos faz ver melhor

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A Medusa tinha serpentes em vez de cabelos e transformava em pedra todos os que olhassem para o seu rosto. Perseu apanhou-a uma vez a dormir e cortou-lhe a cabeça. Foi valente, mas quem eu gostaria mesmo de conhecer era o cabeleireiro da Medusa, que tinha de lidar com aquilo todos os meses. Infelizmente, a mitologia grega não fala desse herói

Sobre Perseu há mais literatura. A história é interessante. Para não ser transformado em pedra, Perseu recorre a um estratagema: usa o seu escudo como espelho. Na superfície polida do escudo consegue ver o monstro sem olhar diretamente para ele e o mata com uma espada. 

O mito tem sido interpretado de várias maneiras. Acadêmicos feministas têm lido a história como uma representação da reação ao poder feminino e do impulso para castigar mulheres poderosas. Freudianos veem a decapitação como, adivinharam, símbolo de castração —e, a propósito da capacidade da Medusa de petrificar quem a contempla, o próprio Freud escreveu que estávamos, evidentemente, perante uma referência à ereção. 

Ilustração de homem com uma faca em uma mão e uma cabeça na outra, como no mito de Medusa
Luiza Pannunzio/Folhapress

Cada um tem as suas obsessões —e eu também tenho a minha. Aquilo que me chama imediatamente a atenção no mito é o escudo. Um escudo é, normalmente, um instrumento de defesa. Mas no mito é, além disso, um instrumento de ataque. Ao mesmo tempo que fornece proteção, também oferece a única possibilidade de atacar, que é ver o inimigo sem olhar diretamente para ele. 

Essa dupla condição, a de arma defensiva e ofensiva, é obtida por causa de uma ocorrência rara: coisas frágeis, como um espelho, não costumam ser levadas para a guerra. E, no entanto, a invulgar eficácia desta arma reside no fato de se tratar de um escudo que é simultaneamente um espelho. 

É muito provável que já tenham percebido onde quero chegar. Um escudo que é ao mesmo tempo um espelho: eis uma excelente definição daquilo a que costumamos chamar “humor”. O primeiro instinto, quando queremos nos proteger, é fechar os olhos. Nessa medida, o humor é contraintuitivo, uma vez que não só não faz com que deixemos de ver como —acho eu— faz com que se veja melhor. 

Acontece que o escudo de Perseu não é apenas um espelho. É, como todos os escudos, um espelho convexo. Ou seja, é um espelho que, como acontece com as caricaturas, nos mostra uma imagem deformada, pior do que a imagem real. Essa é uma estranhíssima forma de proteção. E, no entanto, resulta.

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