Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu

Conheço as armadilhas que as palavras montam

Quando alguém lhe disser que você não sabe o que diz, o melhor é concordar

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Quando alguém lhe disser que você não sabe o que diz, o melhor é concordar. Eu concordo sempre, não só porque tenho uma autoestima baixa, mas também porque conheço as armadilhas que as palavras montam.

Por exemplo, quando digo que determinado acontecimento foi auspicioso, estou a falar em pássaros. A palavra auspício vem da expressão latina “avis spicium”, ou seja, contemplar as aves, por causa de um antigo método de prever o futuro. Soltava-se um grupo de aves; se o bando voasse para a direita, era bom sinal, se voasse para a esquerda, era mau.

Se digo que montei um alarme residencial, revelo o meu caráter belicista: a palavra alarme deriva da locução italiana “all’arme”, que é um apelo às armas. Portanto, quando digo que a montagem do meu alarme foi um bom auspício, é possível que, sem querer, eu esteja a exprimir o desejo de pegar em armas para matar um pombo. É complicado.

A expressão que, sem o sabermos, mais nos ensina, é o “pomo da discórdia”. Quando descobri que a palavra pomo designa um fruto, a minha vida mudou. Nos restaurantes, na hora da sobremesa, pergunto sempre: que pomos tem? Os empregados, em regra, ficam alarmados. O que não auspicia nada de bom para a minha refeição.

O “pomo da discórdia” original era uma maçã. Eris, a deusa da discórdia, não foi convidada para o casamento de Peleu e Tétis. Mesmo assim, apareceu na boda e deixou uma maçã de ouro com uma nota: “Para a mais bela da festa”.

Ilustração de mão segurando uma maça
Publicada neste domingo, 9 de fevereiro de 2020 - Luiza Pannunzio/Folhapress

As deusas Hera, Atena e Afrodite pediram a Zeus que decidisse qual delas era a mais bela, mas Zeus entregou a missão a Páris. Para convencer Páris a dar-lhe o prêmio, cada deusa prometeu-lhe um presente: Hera disse que o faria rei da Europa e da Ásia, Atena ofereceu-lhe sabedoria e habilidade, e Afrodite jurou entregar-lhe o amor da mulher mais bonita do mundo, Helena de Troia.

Páris deu a vitória a Afrodite, seduziu Helena e deu origem a uma guerra de dez anos. É uma história estranha por várias razões: não ser convidado para casamentos é uma bênção e, no entanto, Eris fica magoada; três deusas competem por uma maçã de ouro, uma peça de decoração brega que não fica bem em casa nenhuma; Zeus, mesmo sendo o todo-poderoso, sabe que não é prudente ser jurado em concursos de beleza; Páris, em vez de escolher capacidades que lhe garantiriam várias mulheres, opta por ter apenas uma.

Pessoalmente, discordo do pomo da discórdia.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.