Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu

Depois de '...E o Vento Levou', contextualizem o mundo todo, por favor

Meu medo é que aqueles que, em 2020, ainda não entenderam que racismo é estúpido não se deixem educar

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A HBO Max retirou o filme “…E o Vento Levou” do catálogo porque contém preconceitos étnicos e raciais. Para o leitor e para mim isso não é problema, é claro. Somos pessoas iluminadas que sabem que o racismo é nocivo.

Mas e as pessoas que veem o filme, consideram os preconceitos interessantes e começam a discriminar ainda antes dos créditos finais? Para esses, a HBO Max vai fazer uma contextualização, antes de repor o filme. O meu medo é que quem, em 2020, ainda não entendeu que o racismo é estúpido e que um filme de 1939 retrata a realidade de 1939 não se deixe educar pela contextualização, por melhor que ela seja.

Entretanto, a Netflix retirou as séries “Little Britain”, “The League of Gentlemen” e “The Mighty Boosh”, e a BBC retirou um episódio de “Fawlty Towers”. Não há notícia de que venham a ser contextualizados, pelo que devem estar para lá de contextualização.

Impressionado com o nível de ideias danosas na produção audiovisual, resolvi aguardar as contextualizações refugiado nos livros. Talvez tenha tido azar.

Ilustração de pessoa cabisbaixa sentada no tapete de uma sala. Na tela da TV, é possível ler “Black lives matter”. Há uma samambaia e uma bandeira com faixas coloridas penduradas na parede
Publicada neste domingo, 21 de junho de 2020 - Luiza Pannunzio/Folhapress

Comecei com “Os Lusíadas”, convencido de que seria uma escolha segura, mas mesmo no fim li: “Vês Europa Cristã, mais alta e clara/ Que as outras em polícia e fortaleza./ Vês África, dos bens do mundo avara,/ Inculta e toda cheia de bruteza”. Fechei o livro imediatamente, mas o mal estava feito: o canto de sereia do racismo a me seduzir sem que eu estivesse firmemente atado ao mastro com as cordas benignas da contextualização.

Abri o “Amada”, o “Huckleberry Finn”, “O Sol É para Todos”, o “Ratos e Homens” e “O Senhor das Moscas”: todos incluíam, sem qualquer contextualização, o vocábulo a que os americanos se referem como “a palavra começada por n”. Nem um parêntesis, nem uma nota de rodapé, nem um sistema que permita dar um pequeno electrochoque ao leitor sempre que lê aquele termo —nada.

Pensei: a minha única hipótese é a Bíblia. Mas logo no segundo livro a palavra de Deus não só não condena como regula a escravatura. Êxodo, 20-2: “Quando comprares um escravo hebreu ele servir-te-á durante seis anos”. E encontrei mais duas ou três ideias bem impalatáveis. Um perigo.

Optei pela filosofia: outro erro. Apanhei Platão e Aristóteles a justificarem também a escravatura. Não se aguenta. Contextualizem o mundo todo, por favor.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.