Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Não quero intimidades comigo mesmo, se me vir na rua, mudo de passeio

É ridícula a ideia de que eu sou um enigma que preciso decifrar

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"Viver é o meu trabalho e a minha arte", disse Montaigne. Muito esperto. É xeque-mate na mulher.

"Michel, mais um dia no sofá a ver televisão?"

"Silêncio, por favor. Estou a trabalhar."

No entanto, dizer que viver é a nossa arte pode trazer grandes dissabores. Designadamente, os críticos de arte podem querer apreciar os nossos dias. Tecer comentários sobre o modo como comemos uma feijoada, avaliar esteticamente uma altercação que tivemos no trânsito, elaborar uma análise crítica do que um like no Facebook fez pela nossa vaidade.

Ilustração de uma pessoa sentada em frente a uma mesa olhando para um papel. Ela veste uma coleira de pescoço, acessório típico de palhaços, e está cabisbaixa. Há um gato perto dos pés da pessoa e diversos objetos sobre a mesa
Luiza Pannunzio/Folhapress

Não gostaria de abrir o jornal e ler sobre essa peça artística que tinha sido o meu dia anterior. Julgo que, em décadas de vida, ainda não tive um dia que se aproximasse nem sequer de ser uma obra-prima.

Não sou muito bom nisto de viver, tenho de admitir.

Desconheço o movimento artístico a que pertenço. Creio que se pode dizer que tenho tido vários dias surrealistas, mas nunca por escolha minha.

Outras vezes, parece que estou num quadro do Monet, embora esse efeito artístico seja, na verdade, obra do Johnny Walker. Quase nada na minha vida é da minha autoria.

Eu vou sentado no banco do passageiro, não toco no volante. Bem sei que, como disse Sócrates, a vida não examinada não vale a pena ser vivida.

No entanto, eu examinei a minha e concluí que também não valia a pena.

Em 2013, recorri a um analista por causa de um abalo profundo (no espaço de duas semanas o Benfica perdeu o campeonato, a taça de Portugal e a final da Liga Europa).

O extraordinário embaraço que as sessões me provocavam levou a que eu acabasse por deixar de ir.

Primeiro, tinha pudor de dizer a razão pela qual lá estava. Muita gente tem a opinião absurda de que há coisas mais importantes na vida do que o Benfica, e por isso suspeito de que iria ser mal entendido.

Em segundo lugar, eu não tinha nada para dizer ao homem. A ideia de que eu sou um enigma que é preciso decifrar apresenta-se-me como ridícula. Vejo muita gente a gabar a terapia porque se encontrou.

Eu não quero essas intimidades comigo mesmo. Evito encontrar-me. Se me vir na rua, mudo de passeio.

O melhor é avançar com a mesma receita que me trouxe até aqui: dentes cerrados, vergonha e recalcamento. É duro, mas pelo menos não é ridículo.

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