Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Enquanto Dalai Lama é uma figura a se seguir, o humorista se sacrifica

Sempre que um líder espiritual faz brincadeiras, sinto a atitude como uma ofensa à minha dignidade profissional

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Dalai Lama pediu a uma criança para lhe chupar a língua, e sempre que um líder espiritual faz uma coisa dessas eu sinto a atitude como uma ofensa à minha dignidade profissional.

Eu sou um carro-vassoura espiritual. Não lidero. Pelo contrário: sou o último.

A profissão de humorista consiste em comunicar às pessoas os pensamentos mais mesquinhos. As pessoas riem por dois motivos. Primeiro, porque em maior ou menor grau a baixaria que o humorista confessa também já lhes ocorreu na mente.

No desenho de Luiza Pannunzio, Dalai Lama de óculos, chinelos, em pé - usando seus trajes característicos e unindo as palmas das mãos perto do peito em prece, está com a língua pra fora. Acima dele está escrito DALAI bem pequenininho e LAMA bem grandão.
Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araújo Pereira de 15 de abril de 2023 - Luiza Pannunzio

Em segundo lugar, porque não é frequente ver alguém fazendo publicamente aquele tipo de confissão ao mundo. O humorista se sacrifica pelos outros. Jesus Cristo morreu na cruz pelos nossos pecados.

O humorista vive para cometê-los —e, desta forma, salvar os seus semelhantes. Ele sobe ao palco para ser o mais humano de todos os humanos na sala. O mais reles, o mais sujo, o mais irredimível.

Os outros podem olhar para ele e pensar: puxa, eu achava que era ruim, mas com este termo de comparação sinto-me quase um santo.

Imagem do momento em que Dalai Lama pergunta a um menino se ele queria chupar sua língua
Momento em que Dalai Lama pergunta a um menino se ele queria chupar sua língua - Reprodução

O público melhora sem fazer nada por isso, que é a forma mais prazerosa de melhorar. Ficam virtuosos instantaneamente e sem qualquer esforço.

É como receber o teste de matemática, verificar que tivemos 40% de acerto e sentir a nota negativa como documento indesmentível da nossa burrice.

Mas depois perceber que todos os nossos colegas tiveram 15% e nós, subitamente e sem ter estudado um minuto a mais, somos agora os melhores alunos da turma, de longe.

Éramos ignorantes que tinham tido 40%. Trinta segundos depois, somos gênios admiráveis que tiveram 40% de êxito.

Ser líder espiritual consiste no inverso. É ser uma figura moralmente irrepreensível, ter todas as virtudes à mão, servir como um modelo a seguir.

Deve ser muito chato, mas foi a carreira que escolheram. As pessoas devem olhar para o líder espiritual e ambicionar ser, ao menos, quase tão virtuosas quanto ele.

Mas quando o líder espiritual faz coisas que não lembrariam nem ao carro-vassoura espiritual, as pessoas concluem que, se a perfeição é aquilo, mais vale ser irremediavelmente imperfeito.

Ora, este é o meu trabalho. Não é uma brincadeira, a que faço. A imperfeição abjeca custa e não é para todos. Por favor, não tentem fazer isto em suas casas.

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