Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Descrição de chapéu

O mundo já melhorou com as correções feitas às histórias de Roald Dahl

O nosso progresso moral é tão notável que precisamos trazer ao mesmo nível de santidade quem chafurda na podridão

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É impressão minha ou o mundo já está muito melhor? Desde que os livros infanto-juvenis de Roald Dahl começaram a ser corrigidos, creio que já se respira um ar mais puro.

Os livros cometiam delitos muito graves, e por isso vão passar a ser publicados com emendas. Já passamos da fase da contextualização. Estamos agora na fase de cortar e reescrever as histórias.

O nosso progresso moral é tão notável que precisamos trazer ao nosso nível de quase-santidade certas pessoas que no passado chafurdavam na mais lamacenta podridão.

No desenho de Luiza Pannunzio sobre uma página do livro Matilda de Roald Dahl uma mão esquerda segurando uma borracha apaga algumas palavras enquanto a mão direita segurando um lápis aponta para a palavra IGNORAM do texto e sobre ele vemos duas outras aplicadas: IMPORTAM e PALAVRAS.
Luiza Pannunzio

É o caso de Roald Dahl, e das indecências que foi escrevendo.

Por exemplo, o original escandaloso do livro "O Fantástico Sr. Raposo" descrevia os terríveis tratores pretos como monstros assassinos de aspecto brutal. Na nova versão correta e proba, são apenas monstros assassinos de aspecto brutal. Deixaram de ser pretos.

O fato de os tratores serem pretos era, evidentemente, nocivo. Porquê, eu não sei. Mas estou aliviado.

No livro "Matilda", o autor escreveu que a menina gostava muito de ler, e que através dos livros tinha viajado com Joseph Conrad, tinha ido a África com Ernest Hemingway e à Índia com Rudyard Kipling.

Na nova versão, corrigida virtuosos que não toleram a baixaria de Dahl, Conrad e Kipling foram expulsos, e a menina passeia com Jane Austen e visita a Califórnia com John Steinbeck. Continua a ir à África com Hemingway, mas deixou as leituras problemáticas de Conrad e Kipling, graças a Deus.

Felizmente, os revisores impediram que a menina fictícia tivesse contato com a arte degenerada daqueles autores. Ler grandes obras da literatura mundial poderia causar-lhe danos irreparáveis.

Augustus Gloop, personagem de "A Fantástica Fábrica de Chocolate", deixou de ser gordo e, para alívio de todos, passou a ser "enorme" —pelo menos até à próxima correção. A Sra. Twitt, do livro "Os Pestes", deixou de ser "feia", e é agora "muito desagradável".

Em "As Bruxas", Dahl teve o topete de dizer que as bruxas usavam perucas por serem carecas.

A seguir à explicação aparece agora a redenção: "Há muitas outras razões para que mulheres usem perucas, e não há nada de errado nisso." Amém.

Admiráveis tempos em que os veículos agrícolas não são pretos, as pessoas não são feias nem gordas e ninguém lê Conrad nem Kipling. É o mundo com que sempre sonhei.

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