Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ricardo Araújo Pereira

Dizer eu te amo é tão óbvio que, em certo ponto de vista, pode ser suspeito

É preciso muita sensibilidade para perceber que as pessoas mais duras no fim também são bastante sensíveis à sua maneira

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A certa altura da história, o belo Christian, farto de seduzir Roxanne pelas cartas escritas por Cyrano, resolve abordá-la pessoalmente. Ela quer ouvir ao vivo o mesmo que tem lido nas cartas, mas ele, coitado, não tem talento poético.

"Te amo", diz ele, efusivo, sem produzir lá grande resultado. "Te amo", ele profere de novo.

Ela fica muito desiludida. Desesperado, ele tenta outra estratégia: "Não, não te amo".

Roxanne entusiasma-se: "Ah, melhorou". Christian faz nova tentativa: "Te adoro". E ela: "Oh não, estragou tudo outra vez".

É um momento interessante porque contraria um estereótipo muito irritante: o que diz que só sabem gerir as suas emoções e afetos as pessoas que exibem sinais exteriores de sensibilidade. E que a única maneira de exprimir ternura e amor é através de beijinhos, abraços e "palavras bonitas".

Roxanne rejeita as "palavras bonitas", que considera quase obscenas. Concordo com ela. Eu também prefiro palavras feias. Fui criado por uma mulher que não se exprimia através de abraços, beijinhos e palavras bonitas.

E, no entanto, nunca tive dúvidas do que ela sentia por mim.

No desenho de Luiza Pannunzio - uma senhora está inclinando-se, esticando a mão esquerda em direção a um bebê que está sentado ao chão olhando para ela. O bebê usa regata, bermuda e tênis. Está com as mãos juntas apoiadas no joelho. A senhora, que não olha para o bebê e sim ao leitor - está vestindo uma blusa cinza de gola alta e mangas compridas e uma saia em A com botões na frente num tom de cinza mais claro (que a blusa). Usa também sapatilhas pretas e óculos. Seus cabelos são curtos e cacheados. O piso da casa parece de tábua corrida e eles estão posicionados quase de frente com a porta da cozinha. A leitura da frase "pessoas duras também amam." está dividida por este desenho. Sendo - pessoas duras - do lado esquerdo e - também amam - do lado direito do leitor. As bochechas da senhora tem um leve tom de rosa.
Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricado Araújo Pereira de 18 de fevereiro de 2024 - Folhapress

Há dias, a minha mulher disse na mesa do jantar que tinha ido fazer um exame médico completo e que o doutor tinha revelado que ela estava tão saudável que a sua "idade real" estava 25 anos abaixo daquela que o seu cartão de identidade indicava.

Uma das minhas filhas disse: "Que chato. Vamos ter de aturá-la durante tanto tempo".

À mesa estava também uma pessoa de fora, que presenciou a conversa com horror. Via-se que estava incomodada por uma filha lamentar que a mãe tivesse muita saúde.

Ela não entendia o que estava vendo. Pensava estar assistindo a uma verdadeira e imensa manifestação de ódio.

Escapou a ela que o amor tem de ser especialmente robusto para se exprimir assim. Que dizer "te amo" é tão óbvio que, de um certo ponto de vista, chega a ser suspeito.

É como abordar um desconhecido na rua apenas para lhe dizer: "Não se preocupe que eu não vou lhe fazer mal". A fala terá justo o efeito contrário.

Só um amor muito sólido resiste a ser revelado sem dizer a palavra "amor". É preciso sensibilidade para perceber que os duros também são sensíveis. Mais do que os outros, talvez.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.