Rodrigo Tavares

Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

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Descrição de chapéu Portugal União Europeia

Os brasileiros não são porcos

Em Portugal, denúncias de xenofobia cresceram 833%; número de artistas brasileiros aplaudidos de pé cresceu

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Vários artigos na imprensa brasileira têm soado o alarme para o aumento da xenofobia e dos maus-tratos contra brasileiros em Portugal. Em um vídeo recente que viralizou, uma portuguesa ataca uma brasileira com declarações xenófobas ("Sua porca! Vai para a sua terra, sua porca"). O ministro Flávio Dino reagiu com igual fineza, sugerindo que Portugal "devolva o ouro [brasileiro]".

Os números não mentem. Entre 2017 e 2022, as denúncias de xenofobia contra brasileiros em Portugal cresceram 833% segundo dados da CICDR (Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial), o órgão público especializado no combate à discriminação. Comparativamente ao Brasil, em Portugal, a xenofobia, misoginia e o racismo são alvo de menor vigilância social, exposição mediática e condenação legal.

Mulher portuguesa ofende brasileira em aeroporto da cidade de Porto
Mulher portuguesa ofende brasileira em aeroporto da cidade de Porto - Reprodução

Uma outra radiografia, complementar e não substitutiva, é possível. "Temos mais a aprender com o Brasil do que o contrário" me diz o diretor artístico do Alkantara Festival, o português David Cabecinha. Cerca de 40% da programação da edição deste ano do celebrado festival de "dança, teatro, performance e encontros" em Lisboa é composta por artistas brasileiros.

No início deste mês, passaram pela tradicional Fundação Gulbenkian, um dos maiores polos culturais em Portugal, criada com a fortuna petrolífera de um imigrante de origem armênia, a artista multidisciplinar brasileira Gaya de Medeiros e a performer Izabel Nejur, residente em Portugal desde 2018, para falarem de nus artísticos e dança livre. Foram um dos destaques do festival "Dança não Dança - Arqueologias da Nova Dança em Portugal", ainda em cartaz.

Há presença de brasileiros em praticamente todos os maiores festivais culturais no país e na programação das principais salas de espetáculo e de exposições, como a Culturgest, o CCB, o Teatro Municipal do Porto ou a Fundação Serralves. Lia Rodrigues, Ailton Krenak, José Miguel Wisnik e dezenas de outros brasileiros encheram plateias nos últimos meses. A Fundação cultural holandesa Kees Eijrond abriu uma filial em Portugal a semana passada e contratou a brasileira Mirna Queiroz como diretora executiva (registro de interesses: é minha esposa).

Lélia Wanick Salgado, laureada com o Prêmio Gulbenkian para a Humanidade, foi uma das convidadas especiais do novo festival literário Utopia, na cidade de Braga, que ocorreu há uns dias. Os maiores festivais literários em Portugal, como o Folio em Óbidos e o 5L em Lisboa, abrem cada vez mais espaço não só para escritores como também para mediadores e programadores brasileiros.

Os três últimos vencedores do Prêmio Leya, o único que permite um embate direto entre obras anônimas de escritores portugueses e brasileiros, teve três brasileiros vencedores nas últimas quatro edições. O último, Victor Vidal, foi anunciado nesta terça-feira (14). Na mesma linha, o jornalista brasileiro do jornal Mensagem, Álvaro Filho, ganhou em setembro a segunda edição do Prêmio de Crônica Jornalística Rogério Rodrigues com um texto sobre imigração.

Para cada portuguesa que ataca uma brasileira no aeroporto com declarações xenófobas, há um milhão de portugueses que querem conhecer melhor as culturas e as experiências de todos os brasis. Mesmo não havendo reciprocidade. Contam-se pelos dedos de uma mão os intelectuais ou artistas portugueses que têm os palcos brasileiros à sua mercê. Meia mão. Um polegar voltado para cima.

Certamente que artistas brasileiros sempre transitaram por Portugal. Caetano Veloso se apresentou pela primeira vez em Lisboa em setembro de 1981. Fafá de Belém é mais famosa no bairro lisboeta de Belém do que em Belém do Pará. Há toda uma geração portuguesa de cabelos grisalhos que nasceu com Chico, cresceu com João Gilberto, namorou com Toquinho e se casou com Vinicius. Há poucas semanas, a Universidade Nova de Lisboa distinguiu Gilberto Gil com o título de Doutor Honoris Causa. Foi lindo de morrer.

Mas sempre foram turnês passageiras e pouco questionadoras. Só nos últimos anos uma nova geração de artistas brasileiros tem puxado os portugueses para as águas profundas do Atlântico, as águas cruzadas por pessoas colonizadoras, pessoas escravizadas e pessoas emigradas e imigradas. A rede de pesca dos relatórios do CICDR não consegue capturar a benéfica contribuição de artistas brasileiros para as discussões sobre as fricções e as incoerências da sociedade e da historiografia portuguesas.

Disse em um debate o ator brasileiro Frederico Araujo, protagonista da peça "Antígona na Amazônia", apresentada em Lisboa e no Porto a semana passada: "a arte é muito importante como disputa de narrativa e o meu corpo é um lugar político". A sala da Culturgest estava cheia.

Têm sido sobretudo os artistas brasileiros, muitos deles residentes em Portugal, que têm usado as expressões artísticas para discutir as fronteiras da justiça, da identidade e da inclusão. A arte passou a ser um palco propício ao inquérito.

A maioria dos portugueses ainda se envaidece com a suposta inexistência de racismo estrutural e com a brandura colonial gilbertofreyana dos seus antepassados. Sentados agora nas plateias, habituado aos silêncios da história, sentem-se atordoados por quem quer preencher estes espaços vazios com narrativas incomuns. Em um exercício tão masoquista quanto amadurecedor, os ingressos esgotam.

Em 2022, o CCB em Lisboa recebeu um ciclo de conferências sobre as questões da representação e das imagens numa perspectiva de descolonização (com a antropóloga brasileira Heloísa Pires Lima). Também o ano passado, colonialismo e Brasil foram destaque nos 20 anos do festival de cinema DocLisboa (com a presença dos cineastas brasileiros Luciana Bezerra, Pedro Rossi e Gustavo Melo).

Nunca se discutiu tanto em Portugal identidade trans quanto após o protesto da atriz Keyla Brasil no teatro São Luiz em janeiro deste ano. Esta semana, o poeta e ensaísta brasileiro Silviano Santiago, na cerimônia de entrega do Prêmio Camões, reivindicou uma língua portuguesa multiétnica.

Para uma população de quase 500 mil brasileiros em Portugal, a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial recebeu 168 queixas de discriminação em 2022. O aumento de 833% desde 2017 é proporcional ao aumento galopante de imigrantes brasileiros. Ou seja, estatisticamente, em termos reais e não nominais, o nível de discriminação não cresceu.

Ainda assim, continua existindo um tipo de português precário que gosta de reduzir o outro. Há pelo menos 168 vítimas brasileiras de discriminação, sejam elas reais ou nominais.

No mesmo período, cresceu a violência e o crime de portugueses contra portugueses. A xenofobia contra estrangeiros deve ser inserida num quadro maior de degradação social. É o que consta da mais recente edição do Relatório Anual de Segurança Interna, um documento de 285 páginas que nos informa que, na comparação com 2021, subiram as participações criminais (+14,1%) incluindo as de criminalidade violenta e grave (+14,4%), a violência doméstica (+14,9%), a criminalidade grupal (+18%), o tráfico de entorpecentes (+48,1%), a delinquência juvenil (+50,6%), o crime digital (+48,3%), a extorsão (+49,9%), o roubo nas ruas (+21,1%) e as violações (+30,7%).

Vamos a outras estatísticas comparativas entre os países europeus. No mais recente Eurobarômetro sobre discriminação, concluiu-se que os alvos na Europa (e em Portugal) são sobretudo as mulheres, os jovens, as pessoas com deficiência, os idosos e as pessoas com cor de pele diferente da maioria da população.

O masculinismo é uma das patologias mais difíceis de erradicar. Muitas mulheres ainda só são esposas de um homem. Mas quando questionados sobre como se sentiriam se uma pessoa de origem ética diferente da portuguesa assumisse uma posição política relevante no seu país, apenas 11% dos portugueses manifestaram desconforto (a média europeia é 16%. Na Itália, outro país com forte ligação ao Brasil, o desconforto é partilhado por um quinto dos italianos).

Os desassossegos causados pelo fim do império português (1415-1999), a deterioração da economia portuguesa, a degradação política (o primeiro-ministro está de saída), a consolidação de um partido de extrema direita e a redução drástica da qualidade de vida de quem vive em Portugal são um abecedário muito extenso que podemos usar criativamente para fazermos todos os recortes sociológicos e criminais que quisermos.

Alguns jornalistas no Brasil preferem destacar o "Sua porca! Vai para a sua terra, sua porca". Falta se sentarem em uma plateia cheia em Lisboa vendo artistas brasileiros sendo aplaudidos de pé.

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