Rodrigo Tavares

Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

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Descrição de chapéu Portugal

Como os brasileiros comuns ainda financiam a família real portuguesa

Apesar da Independência em 1822, o contribuinte brasileiro continua pagando tributos aos herdeiros portugueses de d. Pedro 2º, enquanto o contribuinte português não o faz

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Se Portugal voltasse a ser uma monarquia, o rei seria o insípido d. Duarte Pio de Bragança (e mais alguns nomes), de 78 anos. A sua filha Maria Francisca de Bragança, terceira na linha de sucessão ao trono português, irá casar-se neste fim de semana no sumptuoso Palácio Nacional de Mafra, a 40 km de Lisboa, construído no século 18, reconheça-se, com o ouro oriundo das Minas Gerais. É o palácio que inspirou o "Memorial do Convento", de José Saramago.

O casamento terá a presença de "1.200 convidados, contando com personalidades de destaque da vida social e política dos quatro cantos do mundo, incluindo membros de famílias reais estrangeiras", refere o comunicado da Casa Real Portuguesa. Terá transmissão em direto pela TVI, um dos principais canais de televisão português. Estarão presentes os príncipes do Luxemburgo e o presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Coroa portuguesa é exposta no Museu de Tesouros da Família Real de Portugal, em Lisboa
Coroa portuguesa é exposta no Museu de Tesouros da Família Real de Portugal, em Lisboa - Patricia de Melo Moreira/AFP

Nunca saberemos com exatidão como é que os membros da família real portuguesa pagarão as despesas da boda. À luz da lei, são considerados cidadãos comuns e não têm privilégios financeiros, subsídios do erário público ou isenções fiscais especiais com base em seus títulos nobiliárquicos. Também nenhum deles tem uma carreira profissional de destaque monetário nos setores público ou privado. A infanta trabalha numa agência de comunicação; os pais praticamente nunca trabalharam.

A família dos Bragança chegou ao trono português em 1640 com d. João 4º. Quando a monarquia foi abolida em 1910, as propriedades da família real foram confiscadas e nacionalizadas, incluindo o monumental Palácio de Mafra.

Mas sabemos que a família real portuguesa continua sendo apoiada financeiramente por cidadãos comuns brasileiros. "Todo o território onde está construído Petrópolis é propriedade da minha família materna e daí recebemos também um rendimento" afirmou d. Duarte Pio de Bragança a um programa na televisão portuguesa exibido em maio de 2020.

No Brasil, com a instauração da República em 1889, as posses da família real foram confiscadas, como o Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro. Ainda assim, os habitantes de Petrópolis continuam pagando uma taxa sobre o valor das transações imobiliárias, que é revertida aos descendentes do último imperador brasileiro.

A Companhia Imobiliária de Petrópolis, sucessora da velha Superintendência da Fazenda Imperial, que administra hoje os interesses fundiários dos herdeiros de d. Pedro 2º, mantém o direito legal à cobrança de um laudêmio sobre os seus terrenos em regime de enfiteuse, exercido por intermédio do pagamento de 2,5% sobre o valor de alienação desses imóveis.

Explica o português Duarte Pio de Bragança no programa de TV: "O imperador [brasileiro] d. Pedro 2º, bisavô da minha mãe, comprou aquela fazenda e construiu lá a sua casa de verão. Muita gente foi viver para lá e queria comprar terrenos. Ele não vendeu nada, mas cedeu os terrenos em troca do pagamento de uma pequena percentagem de 2,5% sobre futuras vendas de casas e isso vigora até hoje". 

Em entrevista de 2006 para a revista portuguesa "Sábado", d. Duarte Pio também explicou como é que, durante o exílio na Suíça, quando era criança, a família subsistia financeiramente: "a minha mãe tinha alguns rendimentos do Brasil, que vinham da Companhia Imobiliária de Petrópolis, criada pelo meu bisavô, d. Pedro 2º, e que detém todos os terrenos da cidade. Cada vez que se vendia uma propriedade, pagavam-nos 1%." O contribuinte brasileiro paga tributos diretamente à família real portuguesa, enquanto o contribuinte português não o faz.

Fachada do Museu Imperial, em Petrópolis (RJ)
Fachada do Museu Imperial, em Petrópolis (RJ) - Vanessa / AdobeStock

A coleta, nos dias de hoje, do laudêmio é grávida de vários anacronismos. Como mencionou d. Duarte Pio, em 1830, o então imperador d. Pedro 1º comprou uma propriedade, chamada Fazenda do Córrego Seco, onde hoje é o Primeiro Distrito de Petrópolis, com a intenção de construir uma residência de veraneio. Em 1843, o seu filho imperador Pedro 2º assinou um decreto imperial visando a fundação de um povoado e a construção de uma residência imperial na futura Petrópolis. A aquisição e usufruto destas terras foi feita na sua qualidade de imperadores monárquicos e, por isso, a propriedade deveria ter sido cedida ao Estado com a implantação da República em 1889.

O laudêmio é uma importante fonte de rendimentos para a família real, tanto no Brasil, quanto em Portugal. Segundo apuração da Folha o ano passado, a gestão da taxa motivou uma disputa judicial dentro de uma parte da família imperial, envolvendo o próprio dom Duarte Pio, um dos membros da Companhia Imobiliária de Petrópolis.

A cobrança está protegida legalmente pelo regime de enfiteuse. É um contrato perpétuo através do qual o proprietário de uma terra transfere ao rendeiro (enfiteuta ou foreiro) o direito de cultivar a terra mediante o pagamento anual de um foro (cânon ou pensão) e de um laudêmio, valor devido cada vez que o enfiteuta transferir o domínio a terceiro. É um regime que foi disseminado pelo imperador Justiniano (483-565) como uma forma de ocupar as áreas conquistadas pelo Império Romano e, mais tarde, transladado no século 13 para o ordenamento jurídico português.

É um antiquíssimo instituto legal. Foi o regime aplicado por ordens religiosas e capitães donatários nas antigas colônias para ocupar terras incultas e acelerar o povoamento. Quase sempre o poder colonial tinha como finalidade prender o enfiteuta ou subenfiteuta a uma terra obrigando-o a cultivá-la para poder pagar uma renda. É um regime vitalício de bônus sem ônus, já que os proprietários recebem rendimentos sem responsabilidades de preservação ambiental, social ou de outra natureza. Se o colonialismo é um conceito político, a enfiteuse é a sua expressão territorial.

Com o despertar da democracia em Portugal em 25 de abril de 1974, a enfiteuse foi abolida (decreto-lei número 195-A/76). A nova Constituição da República reforça a proibição deste tipo de regimes de exploração da terra (art. 96). As razões para erradicar a enfiteuse foram explicadas no decreto-lei português: "Através da forma jurídica da enfiteuse têm continuado a impender sobre muitas dezenas de milhares de pequenos agricultores encargos e obrigações que correspondem a puras sequelas institucionais do modo de produção feudal."

Em sentido contrário, a lei brasileira continua preservando o regime da enfiteuse. O Código Civil de 2002 veda a possibilidade de instalação de novas enfiteuses e subenfiteuses, mas não abole as já constituídas, nomeadamente aquelas instauradas sob vigência do Código Civil de 1916.

Este regime não é aplicado só em Petrópolis. No estado do Rio de Janeiro, existem outras enfiteuses cobradas pela Igreja Católica ou por antigas famílias portuguesas, como nos bairros de Botafogo e de São Cristóvão. Impostos são cobrados a imóveis localizados em "terrenos de origem familiar" ou de "famílias colonizadoras". Em São Paulo, são exemplos de enfiteuses imóveis localizados em torno do mosteiro de São Bento, no centro da cidade. Estão também presentes nas cidades de São Francisco do Sul (SC), Barueri (SP) e Santana de Parnaíba (SP), no centro histórico de Olinda (PE), e em torno da basílica Nossa Senhora do Carmo, em Recife, entre outros locais.

Ações coletivas denunciadas por associação de moradores, centenas de ações individuais na Justiça, projetos de lei de deputados e até uma PEC (proposta de emenda à Constituição) têm tentado enfrentar o regime da enfiteuse. Ainda sem sucesso. A própria imprensa portuguesa já cunhou o laudêmio como "uma estranha taxa ". O presidente da Câmara, Arthur Lira, também afirmou que o laudêmio "não tem lógica", "é fora da realidade" e "uma subjetividade absurda". Este fim de semana, entre os 1.200 convidados da boda real em Portugal, haverá quem não concorde.

Erramos: o texto foi alterado

A enfiteuse foi abolida pelo decreto-lei número 195-A/76, e não 195-A/75.

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