Na sua viagem a Portugal, Lula irá enfrentar um ambiente semelhante ao do Brasil entre 2013 e 2016, quando o quadro econômico se degradou, as condições de bem-estar social atingiram o piso térreo e o governo sucumbiu à autofagia política.
O resultado no Brasil foi o impeachment de Dilma Rousseff em agosto de 2016, um ano e oito meses depois de reempossada. Em Portugal, o governo de António Costa (no poder desde 2015 e reempossado há um ano e um mês) tem convivido, quase diariamente, com especulações de uma eventual dissolução pelo presidente da República. A Constituição portuguesa, de pendor semipresidencialista, permite que o chefe de estado demita o governo, o que já aconteceu sete vezes desde o 25 de Abril de 1974.
No fim do seu primeiro mandato, Dilma chegou, segundo pesquisa CNI/Ibope, aos 79% de aprovação —o maior índice para um presidente nesse período desde a redemocratização. Costa foi eleito em 2022 com maioria absoluta, um feito histórico. Pouco tempo depois, ambos os governos foram afetados por inabilidades executivas, baixas governativas e faltas de ética administrativa.
Curiosamente, os dois tiveram um bom desempenho em algumas áreas: Dilma com o Brasil Sem Miséria, a Comissão Nacional da Verdade, o Código Florestal e o Marco Civil da Internet, enquanto Costa tem feito brilharetes com o déficit e a dívida pública. Mas, com os desacertos, Dilma e Costa acabaram perdendo a guerra da comunicação, consolidando-se a crise de governabilidade.
Na verdade, muitos dos problemas imputados a António Costa antecedem seu governo. Portugal tem 16,4% da população abaixo da linha de pobreza (dados publicados em 2023 relativos a 2021), um valor alto em comparação a outros países europeus. Mas a evolução histórica não é abonadora para nenhum governo. Os valores têm se mantido altos e estáveis ao longo das últimas duas décadas, entre 17% e 19%.
A economia também está estagnada há cerca de 20 anos, sufocada por uma baixa produtividade e pela alta carga fiscal. Com isso, os salários são dos mais baixos na Europa. O salário médio bruto é de 1.575 euros (cerca de R$ 8.700). Parece alto, mas, quando descontada a inflação e os impostos, a maioria dos portugueses tem dificuldade em se alimentar saudavelmente e habitar condignamente. A evolução dos salários médios de 2021 para 2022 foi negativa. Os portugueses estão a perder poder de compra.
Os vários governos portugueses têm se beneficiado, ao longo dos anos, de benesses conjunturais, como os fundos da União Europeia. Desde a sua ingressão na organização, em 1986, Portugal já recebeu um valor acumulado de 160 bilhões de euros, tornando o seu desenvolvimento semidependente de subsídios externos.
O turismo, que responde por cerca de 10% do PIB, também tem auxiliado a esconder as úlceras portuguesas. Assim como o saldo positivo da imigração. Nunca tantos estrangeiros viveram em Portugal, injetando novos recursos no erário. Mas tudo isso é como tratar uma doença com anabolizantes. Faltam as reformas estruturais e visionárias que coloquem o país no caminho automatizado do crescimento, da sustentabilidade e da inovação. Dilma foi acusada do mesmo.
A agenda que tem afogado o atual governo português é a da habitação. A crise tem sido alimentada por uma subida contínua dos preços dos imóveis (só em 2022 a valorização foi de 19%, a mais elevada dos últimos 30 anos), dos aluguéis (crescimento, em média, de 35% desde 2018) e pela escalada das taxas de juros.
Em dezenas de municípios, com mais demanda, o preço dos imóveis duplicou em 5 anos. A crise tem levado a uma agitada reconfiguração do espaço social, com consequentemente desgastes políticos. Em fevereiro, o primeiro-ministro anunciou de forma dramatúrgica um pacote de intervenções nesse setor. Mas as medidas, muitas delas pouco competentes, foram mal recebidas pela opinião pública e pelo presidente da República.
Há certamente muitas diferenças. No Brasil, a partir de junho de 2013, multidões e panelas tomaram as cidades do país em manifestações sonoras de desagrado, inicialmente contra o aumento das tarifas de transporte público. Em contraste, a sociedade civil portuguesa é mais entorpecida e as manifestações públicas de desagrado são geralmente técnicas e sindicalizadas. Além disso, em Portugal não há um Eduardo Cunha ou Michel Temer prontos a assaltarem o poder de dentro do poder.
Mas é semelhante o ambiente de desamparo e de desdenho pela classe política. No Brasil, a Lava Jato insuflou legitimidade àqueles que usavam a palavra político como sinônimo de corrupção, enquanto os portugueses são dos europeus que menos confiam no Parlamento, no governo e nos partidos políticos. As taxas de abstenção eleitoral também são cronicamente altas (nas eleições de 2022, 49% não foram votar).
A criminalização da classe política é um banquete para a extrema direita antissistema. No Brasil, as espécies de ratos mais comuns são o rato-de-telhado e o camundongo. Em Portugal, é a ratazana preta. Mas todas procuram abrigo próximo da fonte de alimento, são portadoras de diversos parasitas, são muito adaptáveis e de enorme capacidade reprodutiva.
Se Jair Bolsonaro só poderia surgir no Brasil, André Ventura, o líder do partido radical de direita Chega, só poderá emergir em Portugal. Menos islamofóbico e mais europeísta do que os seus colegas extremistas europeus, Ventura é um megafone desgovernado de críticas à classe política. Nas eleições parlamentares de 2022, o seu partido atingiu 7% (12 deputados). As pesquisas dão-lhe atualmente 12%, ou seja, já é a terceira maior força partidária em Portugal e a sua ascensão ao poder tornou-se verossímil. Ventura tem desferido um rol de insultos contra Lula. No início de maio, Jair Bolsonaro visitará Portugal para uma convenção da extrema direita global, a convite do Chega.
A visita de Lula a Portugal assemelha-se à de um neto ao avô numa casa de repouso para idosos. As manifestações de afeto são circunscritas ao horário da visita e as conversas são mais sobre as lembranças do passado do que sobre o porvir. O Brasil é um país superlativo que nunca reconheceu em Portugal uma prioridade longeva.
Se Lula vier a Portugal para discursar sobre a "relação de irmandade" entre os dois países, entregar prêmios, homenagear personalidades lusófonas, assinar memorandos de entendimento e sublinhar a importância do país irmão "como porta de entrada na Europa dos empresários brasileiros", tal como fizeram todos os seus antecessores, será apenas mais uma visita fotogênica, com gestos ritualizados e palavras benquerentes.
A diplomacia da saudade tem uma certa relevância simbólica que não pode ser negligenciada, é verdade. Mas os dois países enfrentam momentos-chaves de transição e o seu ímpeto colaborativo, em nível diplomático e governativo, deveria ser mais tangível, refletindo a dinâmica demográfica ou acadêmica.
Nas artes, a coreógrafa brasileira Lia Rodrigues deu o mote, apresentando no fim de semana, em Lisboa, a sua nova criação, "Encantado", um estrondo de brasilianidade afro-indígena que deixou o público português atordoado para a urgência de proteger a liberdade de pensamento e de expressão.
Lula deveria aproveitar a estadia aqui para, nos seus contatos com empresários e políticos, discutir medidas plausíveis para evitar os extremismos políticos no grande espaço da lusofonia, com mais apoios à comunicação social, à pesquisa e à eventual criação de um observatório.
Não será uma tarefa fácil, porque Lula é uma pessoa muito menos consensual em Portugal do que era em 2003, 2005, 2007, 2008, 2009 e 2010, quando visitou o país como presidente. Mas o timing é ideal. A sua passagem por Portugal coincide com o 25 de Abril, a grande festa da liberdade.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.