Rodrigo Tavares

Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

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Rodrigo Tavares
Descrição de chapéu Itamaraty Portugal

Pertences de Odette de Carvalho e Souza, 1ª embaixadora do Brasil, estão guardados em mala em Portugal

Acervo histórico da diplomata morta em 1970 é partilhado pela primeira vez por um de seus herdeiros

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Fernando Pessoa, Emily Dickinson e Franz Schubert têm em comum o fato de parte de suas obras mais importantes ter sido encontrada postumamente: a de Pessoa em uma arca de madeira, a de Dickinson escondida em seu quarto, e a de Schubert em um baú.

Odette de Carvalho e Souza, uma das primeiras embaixadoras de carreira no mundo e a primeira do Brasil, não é uma figura de renome internacional. É desconhecida até da maioria dos conterrâneos brasileiros. Mas os seus pertences, composto por fotografias e anotações pessoais da sua vida profissional e familiar, também ficaram guardados numa mala.

Um dos seus herdeiros permitiu à coluna o acesso inédito a esse acervo histórico, revelando novas vertentes de uma mulher que desafiou limites profissionais e de gênero.

 A imagem mostra uma mala antiga aberta, com um interior forrado em tecido azul. A parte interna da tampa possui um compartimento com fecho de couro. A mala é de couro marrom, com marcas de uso visíveis, e possui um cabo de transporte. O fundo da mala é escuro e apresenta algumas manchas.
A mala que guarda os pertences de Odette de Carvalho e Souza; objeto foi revelado pelo herdeiro Ricardo Sá Fernandes - Acervo pessoal

Nascida no Rio de Janeiro em 1904, filha de um Cônsul, Odette de Carvalho e Souza continua a ser uma figura injustamente desconhecida. Não é por falta de vasta produção escrita. Os arquivos da Secretaria-Geral do Itamaraty guardam centenas de seus ofícios diplomáticos. Escreveu prolificamente sobre relações internacionais para o jornal Correio da Manhã (extinto em 1974). Seus relatórios internos perspicazes foram elogiados por ministros e chefes do Estado-maior do Exército.

Mas, como concluem Carolina von der Weid e Eduardo Uziel no capítulo a ela dedicado no livro "DiplomatAs: sete trajetórias inspiradoras de mulheres diplomatas", apesar de ser uma das pensadoras significativas da diplomacia e da política brasileira, foi sujeita a um "processo de apagamento institucional sem paralelo", em contraste com a celebração de diplomatas seus contemporâneos como Araújo Castro (1919-1975) ou Azeredo da Silveira (1917-1990), para não falar de San Tiago Dantas ou Rui Barbosa, homenageados com cátedras, nomes de ruas e extensas biografias.

Carvalho e Souza foi admitida na carreira diplomática em 1936 tendo exercido funções como chefe do Serviço Especial de Informação (1936-1939), Cônsul-Geral em Lisboa (1951-1956), Diretora do Departamento Político e Cultural (1956-1959), Embaixadora em Israel (1959-1961), na Costa Rica (1961-1964) e junto às Comunidades Econômicas Europeias, em Bruxelas (1965-1969). Trabalhou também no gabinete de José Carlos de Macedo Soares e Raul Fernandes, os chanceleres de Getúlio Vargas e Eurico Gaspar Dutra. A ascensão à função de ministra de primeira classe (embaixadora) ocorreu em 1956.

A sua longa trajetória profissional está devidamente documentada. Só relativa à sua estadia em Israel, a mala guarda fotos inéditas da apresentação das suas credenciais ao presidente Yitzhak Ben-Zvi (2ª foto da galeria acima) e registros dos seus encontros com a primeira-ministra Golda Meir, com Amos Ben-Gurion (filho do primeiro chefe de governo de Israel; 3ª foto da galeria acima) e de vários outros eventos oficiais em Jerusalém, incluindo o da recepção oferecida na embaixada por ocasião da transferência da capital para Brasília.

Várias outras fotos ilustram a sua passagem pela Costa Rica, Suíça, Itália e Portugal, onde se encontrou com intelectuais e autoridades políticas e militares (ver 4ª foto da galeria, da visita do Presidente Café Filho a Lisboa, com o presidente português Craveiro Lopes).

A sua biografia reconhece-lhe principalmente o seu trabalho sobre a expansão comunista e o seu impacto no sistema internacional. Durante anos foi a ponte entre o governo brasileiro e a Entente Internacional contra a III Internacional (também conhecida como Liga Internacional Anticomunista), que apoiava financeira e politicamente movimentos e partidos políticos que se opunham ao comunismo. Escreveu dezenas de artigos de opinião na imprensa brasileira contra o comunismo. Controlou as atividades políticas e as disposições ideológicas dos seus colegas diplomatas. Odette era conservadora e tradicional. Manifestou-se enfaticamente contra o reatamento das relações diplomáticas e comerciais do Brasil com a União Soviética. E perdeu a luta de braço.

Ricardo Sá Fernandes, reconhecido advogado português, é o herdeiro da mala com pertences de Odette de Carvalho e Souza. A ponte entre os dois lados do Atlântico foi construída por Ilka de Carvalho e Souza, irmã da embaixadora, casada com o empresário português Albano Lello, ligado à banca e ao comércio de vinhos, com negócios no Brasil. O casal vivia no Porto e pertencia à sociedade burguesa, conservadora e católica. Sá Fernandes é sobrinho-neto de Ilka e seu afilhado. Quando a madrinha morreu, herdou a mala da sua irmã Odette.

Ele recorda-se das visitas regulares de Odette a Portugal para visitar a irmã, "de quem era muito próxima" (5ª foto da galeria). Na correspondência encontrada na mala, Odette tratava-a por "minha querida", dava-lhe "beijos afetuosos" e assinava "mana saudosa". Também enviou fotos ao "querido mano Carlos, com mil saudades". A embaixadora nunca casou e não teve filhos.

Em ambientes menos íntimos, "pedia para ser tratada por ‘Sra. Embaixador’ porque achava o termo ‘Embaixadora’ menos digno", recorda Ricardo. Mas dizia orgulhosamente que era a segunda mulher a ser nomeada embaixadora a nível mundial, sendo a primeira uma soviética. "Lembro-me perfeitamente disso."

De fato, durante toda a vida Odette mantem uma certa dubiedade face ao feminismo. No verso da foto que enviou à "minha querida Ilka" da tomada de posse do presidente da Costa Rica Francisco Orlich Bolmarcich, onde aparece rodeada de homens, escreveu ironicamente: "como vê, eu sou do bloco ‘eu vou sozinho’" (ver 6ª foto da galeria). Ricardo recorda-se desta conscientização do seu pioneirismo feminino, "mas não foi feminista no sentido tradicional", afirma.

Em artigos na imprensa que escreveu, destacados por Carolina von der Weid e Eduardo Uziel, Odette parece viver numa tensão entre igualdade de direitos e a defesa de uma visão cristã e conservadora do papel da mulher. Ainda que o seu trabalho tenha chegado a ser publicamente elogiado por Bertha Lutz, uma das figuras mais significativas do feminismo no Brasil do século 20, Odette nunca foi uma sufragista ou ativista dos direitos humanos. Apesar de serem incontáveis os sinais do orgulho que sentia pelo seu estatuto pioneiro, a sua trajetória profissional foi sempre presencialmente acompanhada por um homem, o seu pai Carlos. Já idoso, ainda ocupava espaço oficial e pessoal junto da embaixadora e da filha, recorda Ricardo (ver 7ª e 8ª fotos da galeria). Os seus escritos encontrados na mala incluem várias referências afetuosas ao "papai" e descrições de brincadeiras entre os dois em eventos oficiais.

A imagem em preto e branco mostra três pessoas em um ambiente interno. À esquerda, uma mulher com um chapéu e roupas escuras está abraçando um homem de óculos escuros e terno. O homem parece estar sorrindo. À direita, um homem de terno escuro está se inclinando para cumprimentar o homem de óculos, segurando seu braço. O fundo é desfocado, sugerindo um ambiente de reunião ou evento social.
Odette de Carvalho e Souza e seu pai com Carlos Lacerda, data desconhecida. - Acervo pessoal

É possível que Odette associasse a pauta feminista à agenda comunista, que reprovava. Simplisticamente, tanto o feminismo quanto o comunismo se baseiam na ideia de que as desigualdades sociais são construídas e podem ser superadas. Algumas teóricas e militantes do feminismo, como Alexandra Kollontai (1872-1952), foram importantes figuras na Revolução Russa de 1917.

O anticomunismo pode também ter sido a linguagem comum entre Odette e o político Carlos Lacerda, especialmente após a ruptura deste último com o movimento comunista em 1939. A mala contém uma mão cheia de fotos de encontros dos dois, em ambiente de confraternização (ver 9ª e 10ª fotos da galeria).

Mas as biografias tanto de Lacerda quanto de Odette já publicadas são parcas sobre esta relação. Carolina von der Weid e Eduardo Uziel mencionam apenas que a embaixadora enviou um ofício da embaixada na Costa Rica elogiando os principais oponentes políticos do presidente João Goulart, como Carlos Lacerda. Por outro lado, em "Carlos Lacerda. A Vida de um Lutador" de John W. F. Dulles menciona-se que o ex-governador do estado da Guanabara comentou com amigos que Odette, como "impetuosamente anticomunista", poderia ser convidada para fazer um estudo sobre o Partido Comunista do Brasil.

Mas as fotos guardadas na mala sugerem uma relação próxima. Ricardo Sá Fernandes também afirma que a tua tia-avó Ilka tinha um retrato de Carlos Lacerda na sala. "A família era lacerdista", conta.

No passado, Lacerda e Odette chegaram a estar em lados opostos da barricada. Enquanto o político carioca participou da chamada Intentona Comunista, uma tentativa de golpe contra o governo de Getúlio Vargas em novembro de 1935, Odette atuou nos bastidores para estancar a insurreição promovendo, por exemplo, a deportação de Olga Benário Prestes, uma militante comunista alemã enviada ao Brasil em 1934 para apoiar o Partido Comunista Brasileiro.

As reveladoras correspondências de Odette com a Liga Internacional Anticomunista foram descobertas recentemente e partilhadas com a coluna pelo pesquisador Rogério de Souza Farias, da Universidade de Brasília. Em uma delas Odette informa que já falou com o chefe da polícia para que, ao ser expulsa do Brasil, Olga não tenha permissão de transitar por Espanha ou França para que não tenha possibilidade de fugir (ver 11ª foto da 1ª galeria).

A trajetória profissional de Odette é um produto de concessões e ambições, recheada de pragmatismo, desvios e ajustes. A sua obra tem estatura própria e talvez seja injusto afunilá-la, nos anais da História, à distinção de ter sido uma das primeiras embaixadoras do mundo (ver 12º foto da 1ª galeria). Ademais, a comparação entre carreiras diplomáticas em diferentes países é desafiadora devido a suas especificidades históricas e políticas.

É fundamental distinguir entre embaixadoras de carreira, nomeações políticas e chefes de missão. A ausência de estudos globais sobre a nomeação de mulheres para cargos diplomáticos torna difícil determinar com precisão quem foi a primeira embaixadora. A questão, portanto, permanece em aberto. A coroa tanto pode ser atribuída a Odette quanto a Ruth B. Owen, nomeada embaixadora dos EUA na Dinamarca em 1933 ou a Diana Abgar, que chefiou a missão da Arménia no Japão em 1920. Ou à russa Alexandra Kollontai. Ou a outras mulheres que a História ainda não cartografou.

Odette faleceu no Porto, em 1970, enquanto a sua residência na zona do Estoril, perto de Lisboa, encontrava-se ainda em construção. Uma mulher que devotou toda a vida a servir o Brasil, preferiu aposentar-se em Portugal, perto da irmã. Ao longo da vida, quando visitava intermitentemente Lisboa, alojava-se no Hotel Flórida, construído em 1941 e ainda aberto ao público. Foi a poucos metros desse local que, quatros anos após a sua morte, no dia 25 de abril, uma mulher começou iconicamente a distribuir cravos aos militares revolucionários que instauraram uma democracia alinhada com o comunismo e o socialismo. Apoiaria Odette a Revolução dos Cravos?

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