O novo governo português liderado por Luís Montenegro anunciou nesta terça-feira (14) que Lisboa terá um novo aeroporto, a ser construído na região metropolitana de Alcochete, a 40 km da capital. Custará entre $6-8 bilhões de euros e demorará pelo menos 10 anos a entrar em operação. Será a maior obra pública em Portugal dos últimos 50 anos e irá chamar-se Aeroporto Luís de Camões.
Muitos portugueses ainda não celebraram. Anúncios similares têm sido feitos por quase todos os governantes desde 1969, quando os ditadores Marcelo Caetano e Américo Tomás (que após a Revolução dos Cravos de 1974 se refugiaram no Brasil), anunciaram a criação de um novo órgão para "empreender, promover e coordenar toda a atividade relacionada com a construção do novo Aeroporto de Lisboa."
O atual aeroporto foi inaugurado em 1942. Em 1969, o governo concluiu que a infraestrutura estava a ficar severamente constrangida e que o país estava a perder a posição privilegiada que tem quanto às comunicações aéreas e, por isso, era necessário enfrentar o "importante problema nacional". Com o tempo, o aeroporto de Lisboa foi devorado pela malha urbana. É o único aeroporto multicontinental localizado dentro de uma cidade europeia. Há quem desembarque e, como eu, vá para casa a pé. As restrições e finitudes do velho aeroporto são uma pedra no sapato do desenvolvimento econômico, turístico e ambiental do país.
Mas não se avança. A necessidade de construir um novo aeroporto é dos poucos temas que reúne consenso nacional há décadas. Nem a genialidade de Cristiano Ronaldo ou a veracidade das aparições de Fátima geram tanta concordância. Mas não se avança. O contrato de concessão do velho aeroporto com a francesa Vinci permite a disponibilização de recursos para ser construído um novo aeroporto e a União Europeia dispõe de fundos copiosos para financiar a infraestrutura. Mas não se avança. Nos últimos 55 anos já foram analisadas, discutidas e testadas mais de 30 localizações diferentes para o novo aeroporto –não faltam terrenos disponíveis nem prateleiras bibliófilas de estudos técnicos. Mas não se avança. Passou a fazer parte da costumeira dos governantes recém-eleitos afirmar "é desta vez que o problema será resolvido". Os antigos primeiros-ministros Guterres, Sócrates e Costa anunciaram intenções, localizações ou prazos. Aliás, o anúncio ontem de Montenegro faz lembrar o de José Sócrates a 10 de janeiro de 2008. Mas não se avança.
A construção do novo aeroporto passou a ser o arquétipo da incapacidade dos portugueses de tomarem decisões estratégicas. Se Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues ou Millôr Fernandes expuseram com perspicácia as mazelas da vida brasileira, a boçalização e caricaturização dos portugueses é consumada com uma visita ao aeroporto Humberto Delgado.
Há muitas características que podem eventualmente explicar os atrasos inexplicáveis, desde a hiperpartidarização da atividade política e cívica, a falta de cultura de políticas públicas ou o baixo senso crítico individual. Mas há uma que se sobrepõe e que diferencia portugueses de brasileiros. A maioria dos portugueses não tem cultura de risco e empreendedorismo, o que pressupõe tomar decisões difíceis e frontais e assumir responsabilidades. A mera possibilidade de saírem dos seus espaços de segurança, marcados pela constância e previsibilidade, gera um incômodo superior aos impactos negativos da paralisia decisória.
Nas escolas de administração, estudamos os diferentes estilos de tomada de decisão –do americano ao alemão, japonês e escandinavo. No árabe, por exemplo, centrado na criação de consensos, a honra, reputação e relacionamentos são mais importantes do que velocidade. O estilo português é o da transferência de responsabilidades. É o instrumento à disposição da maioria das pessoas para evitar conflitos e desaprovações. Tomar decisões significa assumir-se um risco e, por isso, procrastinam-se ou transferem-se para uma pessoa posicionada acima na linha vertical de comando. Substitui-se o engenho pela anuência. A cultura profissional é marcada por contínuos carimbos, validações e estudos. Ou então por anúncios arrebatados que servem para criar uma falsa ilusão de mudança. O filósofo português José Gil, em livro de 2004, cunhou a expressão "o medo de existir" para descrever o coletivo português e culpou o salazarismo por ter extraído do povo o seu arrojo e desembaraço, algo que o caracterizou durante séculos. Em publicação anterior, Gil tinha descrito o mesmo fenômeno como "retórica da invisibilidade".
A transferência de responsabilidades, e principalmente a insegurança individual que lhe subjaz, não torna apenas dormente a gestão pública e privada. Também gera desconfiança, ressentimento e sobrecargas. E inveja, sabotagem e micro-difamação. Em "Os Lusíadas", o patrono do novo aeroporto escreveu que, em sua jornada marítima até à Índia, os portugueses tiveram de lutar contra criaturas marinhas monstruosas. Para construírem o novo aeroporto as criaturas marinhas são eles próprios.
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