No seu brilhante artigo de estreia na revista New Yorker em 1999, Anthony Bourdain comparou a profissão de cozinhar ao trabalho em um submarino: ficar "confinado por horas em um lugar quente e sem ar". Chegou a dizer que a "gastronomia é a ciência da dor" e se mostrou incrédulo que haja pessoas "querendo exercer essa profissão por vontade própria", chegando até "a estudar para fazer isso".
Corta para o tempo presente. O bilionário Elon Musk acaba de adquirir o Twitter, dentre outras razões, para mudar a forma como a plataforma lida com a gestão dos conteúdos postados por seus usuários. Na visão de Musk, a rede não possui liberdade de expressão o suficiente, e seu intuito é criar um modelo alternativo. O que Musk está prestes a descobrir é que "a ciência da dor" dos tempos atuais não é mais a gastronomia. É justamente a chamada "moderação de conteúdo": conseguir achar o justo equilíbrio entre a liberdade de expressão e o combate a conteúdos inaceitáveis, incluindo incitação à violência, racismo e outras forma de discriminação.
Essa é uma das tarefas mais difíceis dos tempos atuais. Musk, no entanto, chega ao Twitter com planos que podem ser interessantes. Há alguns meses ele prometeu eliminar os robôs da plataforma. Seu projeto seria de que todos os usuários do Twitter fossem autenticados e falassem em seu próprio nome. Com isso, desapareceriam as contas falsas e outros embustes utilizados para manipular o debate público. A regra seria: um cidadão, uma voz. Fale o que quiser, mas com seu nome real e assuma as consequências.
É um plano ousado. Para ser implementado é necessário de fato que o Twitter não seja mais uma empresa com ações em Bolsa. O custo da perda de usuários ativos e dos muitos milhões de cliques gerados por robôs seria intolerável para os acionistas da empresa. Agora que ele se tornou o controlador da plataforma, pode implementar os experimentos que quiser. Vai ser interessante ver o que acontece.
Outro ponto importante é que Musk anunciou na sexta (28) que "o Twitter vai criar um conselho de moderação de conteúdo com pontos de vista amplamente distintos. Nenhuma grande conta suspensa será restabelecida antes que esse conselho se reúna". Esse ponto é importante. Musk está trilhando os mesmos passos da Meta, empresa dona do Facebook, do Instagram e do WhatsApp. A Meta criou um conselho de supervisão independente para tomar grandes decisões sobre moderação de conteúdo, formado por integrantes com pontos de vista distintos. Este colunista é um dos integrantes desse conselho.
A decisão da Meta foi ousada e influente. A criação de conselhos independentes de moderação de conteúdos converteu-se na mais nova evolução institucional para lidar com a questão. Outras empresas estão seguindo passos similares, como o Spotify, a indiana Koo e agora o Twitter. Até mesmo a nova legislação europeia de serviços digitais, que entrou em vigor há poucos dias, também prevê conselhos decisórios. Como integrante de um deles, posso me dar ao luxo de dar um conselho para Musk: prepare-se para ficar confinado em um lugar quente e sem ar. Essa é uma das tarefas mais difíceis do planeta.
Já era – Não se preocupar com moderação de conteúdo
Já é – Empresas tomando elas mesmas as decisões de moderação de conteúdo, como era no Twitter
Já vem – Conselhos independentes sendo formados para tomar decisões de moderação de conteúdo
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