Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu Partido Republicano

O que uma visita à Disney revela sobre os EUA

Mergulhar fundo nos templos do imaginário do parque é sentir a irrelevância de qualquer ataque político

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O Walt Disney World voltou ao noticiário da guerra cultural esta semana, graças à nomeação do governador da Flórida, Ron DeSantis, de um novo conselho, recheado de seus aliados ideológicos, para supervisionar a infraestrutura do império imobiliário da Disney no estado.

Acontece que agora sou um especialista certificado em Disney, pois minha mulher e eu recentemente levamos nossos filhos para lá pela primeira vez e, vou te contar, há muito a dizer sobre o lugar.

Nossos vários dias lá foram intensos o suficiente para que eu pudesse fazer várias colunas sobre a experiência, mas vou apenas tentar enfiar algumas ideias nesta, da mesma forma que coloquei meus filhos em vagões de montanhas-russas e os vi sair em disparada.

O parque Magic Kingdom, principal atração no Walt Disney World, em Orlando, na Flórida (EUA)
O parque Magic Kingdom, principal atração no Walt Disney World, em Orlando, na Flórida (EUA) - Bryan R. Smith - 30.set.22/AFP

Primeiro, para tirar o material explícito sobre guerra cultural do caminho: mergulhar fundo nos templos do imaginário da Disney é sentir a irrelevância de qualquer ataque meramente político à sua posição cultural.

O conflito de DeSantis com a Disney é muito importante para o futuro do engajamento corporativo na política, que vinha tendendo a uma direção culturalmente progressista e durante algum tempo parecia capaz de atropelar até os governadores republicanos, mas parece ter atingido os limites de sua influência na Flórida.

Mesmo que o recém-nomeado conselho de DeSantis imagine que vai alavancar, digamos, uma disputa para combater a consciência social nos desenhos animados, a maneira como a ideologia costuma se manifestar no conteúdo da Disney simplesmente não parece passível desse tipo de pressão de censura.

Escrevi recentemente que a Grande Conscientização indiscutivelmente teve mais influência no entretenimento infantil –o da Disney incluso, é claro– do que em outros aspectos da cultura pop. Mas essa influência geralmente não assume a forma de propaganda política declarada, porque todo o empreendimento da Disney é uma vasta máquina de sublimação, onde quaisquer valores que pareçam esclarecidos numa determinada conjuntura (liberal da era Roosevelt, liberal dos anos 1990, "woke") são imersos em estruturas de conto de fadas de maneiras não explicitamente políticas, e exatamente por isso são mais poderosas.

Na medida em que uma produção da Disney manifesta o tipo de mensagem progressista óbvia e literal que poderia deixar alguma autoridade republicana indignada, ela falha pelos próprios padrões do Mickey e está destinada à obsolescência, não importa o que aconteça.

O que sobrevive para se fixar no cânone da Disney precisa estar profundamente sintonizado com seu público vasto e bipartidário, mesmo quando há algum tipo de visão ideológica subjacente. A política é bem-vinda no templo, mas nunca nua ou aberta, nunca grosseiramente –apenas com vestes de princesa e filtrada pelas letras de Howard Ashman ou Lin-Manuel Miranda.

Agora, vamos falar sobre o templo em si, ligando a experiência da Disney a três dos meus temas familiares. Primeiro, um comentário sobre a Disney World e a decadência: é impossível passar pouco tempo no sistema de parques e não ficar impressionado com o bom funcionamento das coisas; com a eficiência e a atenção ao detalhe, a meticulosidade e a limpeza casadas com um senso aguçado do que torna as paisagens urbanas e a arquitetura agradáveis à vista.

Não há estagnação e decadência, nem feiuras antiquadas, nem dissonância entre uma época ou estilo contra outro. As partes antigas estão perfeitamente preservadas, como se por um reacionário conselho de preservação histórica –e ainda ali, literalmente em seu quintal, erguem-se as partes mais novas, o bairro de Star Wars e a experiência Avatar, oferecendo as melhores tecnologias atuais de parque temático para corresponder aos anacronismos carinhosamente preservados.

Há muitos comentários hoje em dia sobre como os Estados Unidos lutam para construir coisas, lutam para usar nosso capital humano e nossos talentos, deixando nossa infraestrutura decair enquanto novos projetos são mumificados em processos burocráticos.

Essa sensação de inutilidade não existe na Disney World, entretanto, onde a infraestrutura brilha, o novo corresponde ou supera o antigo, não há ressaca pós-Covid, e em todos os lugares você tem a sensação de inteligências aguçadas sendo postas para funcionar.

(Apenas um exemplo que me peguei analisando, os safáris no Animal Kingdom: pense em quanto esforço, planejamento e know-how zoológico e técnico devem ter sido necessários para criar um habitat onde se podem conduzir multidões de visitantes em um ônibus e criar a ilusão de selva e savana com megafauna carismática visível a cada curva.)

O que aconteceu com a América que colocou o homem na Lua, você poderia perguntar? Meus amigos, essa América ainda existe –está ocupada construindo passeios na Disney. O espírito do programa Apollo vive na simulação Avatar Flight of Passage (altamente recomendado!), um exemplo perfeito de genialidade operando em condições decadentes, construindo não as colônias marcianas que um dia imaginamos, mas as diversões mais incríveis.

Por fim, um comentário sobre a Disney World e a fé religiosa pós-cristã: no ano passado, houve uma breve discussão no Twitter sobre uma manifestação da professora Jodi Eichler, da Universidade Lehigh em Levine, na mesma rede, onde ela adotou o conceito de "adultos da Disney" –adultos que amam e retornam obsessivamente à experiência da Disney independentemente de qualquer obrigação de criar filhos– e instou as pessoas a pararem de "patologizá-los", porque estão obtendo da Disney o mesmo tipo de coisas que outras pessoas obtêm das formas tradicionais de religião.

"As pessoas não apenas se casam na Disney", ela tuitou. "Elas lamentam a perda de parentes na Disney. Elas vão para a Disney comemorar a sobrevivência ao câncer. Elas vão lá para uma última viagem antes de morrerem."

O show de fogos de artifício do Magic Kingdom é "uma chamada ao altar, se é que já houve uma". Medida "não por suas afirmações de verdade", mas sim por "seu poder na vida das pessoas", a experiência da Disney "é tanto uma religião quanto qualquer outra coisa".

Tudo isso parece verdade mesmo sem necessariamente justificar a afirmação de Eichler de que devemos nos abster de julgar os paroquianos na igreja da Disney: uma coisa pode funcionar como uma religião sem ser uma forma de fé particularmente saudável, e talvez não haja problema em se preocupar um pouco com as pessoas que buscam o significado definitivo no que é, no fundo, um templo construído para separá-las o máximo possível de suas poupanças.

Mas a igreja da Disney poderia apontar além de si mesma de alguma forma? Por si só, sua espiritualidade e teologia são bastante limitadas –amor verdadeiro, autorrealização, ultimamente uma dose do estilo terapêutico.

Mas terminamos nossa visita à Disney no Animal Kingdom, passando pelos brinquedos com tema de Avatar (encharcados de panteísmo, como seu material original) e depois saindo enquanto a noite caía sobre a enorme Árvore da Vida (artificial), no centro daquele parque, seu tronco esculpido com um bestiário e suas folhas repletas de cores para o show de luzes na hora mágica do parque.

Parecia um pouco diferente do resto da Disney World –mais reverente do que os outros elementos quase religiosos, menos abertamente comercial, mais distante das origens da Disney no século 20, uma sugestão de um paganismo ou panteísmo do século 21 lentamente dominando o Culto do Rato de dentro para fora.

Então saímos de cena e fomos embora, fechando o aplicativo pela última vez, procurando o ônibus que esperava para voltar ao nosso hotel –precisa e previsivelmente no horário.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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