Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Direita se tornou radical, mas mais feliz, e esquerda entrou em depressão

Conservadores se sentem mais seguros de seus valores; liberais parecem ter encontrado certo desespero

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The New York Times

Uma das dinâmicas notáveis da vida atual nos Estados Unidos é que os conservadores relatam ser pessoalmente mais felizes do que os liberais, mas também parecem mais descontentes politicamente. A esquerda política tornou-se mais institucionalista, mais investida em especialistas e coisas estabelecidas, enquanto a cultura progressista parece mais sombreada pela infelicidade e até mesmo pela doença mental. Enquanto isso, os conservadores declaram maior satisfação em suas vidas privadas –e então votam em forasteiros paranoicos e populistas incendiários.

a foto mostra uma bandeira dos estados unidos num horizonte nublado, com muita névoa. ao fundo, está o contorno dos prédios de nova york
Uma bandeira dos EUA tremula a meio mastro em frente ao horizonte de Manhattan, na cidade de Nova York - Johannes Eisele - 21.abr.20/AFP

Essas dinâmicas não são totalmente novas: como Musa al-Gharbi escreveu num ensaio para a American Affairs, a diferença de felicidade entre liberais e conservadores é uma descoberta persistente da ciência social, visível em várias épocas e em muitos países. Enquanto isso, a opinião de que "minha vida está muito boa, mas o país está indo para o inferno", que parece motivar um certo tipo de apoiador de classe média de Donald Trump, não seria surpreendente se ouvida num bar ou num churrasco em 1975 ou 1990, assim como hoje.

Mas está claro que algo mudou. Na pesquisa Gallup de 2019, pouco antes da pandemia, a diferença de felicidade entre republicanos e democratas era maior que em qualquer pesquisa anterior. E a tendência de agravamento da saúde mental entre os jovens, tema de muita discussão ultimamente, é especialmente marcante entre os liberais mais jovens. (Por exemplo: entre pessoas de 18 a 29 anos, mais da metade das mulheres liberais e aproximadamente um terço dos homens liberais relataram que um profissional de saúde lhes disse que tinham um problema de saúde mental, em comparação com cerca de um quinto das mulheres conservadoras e cerca de um sétimo dos homens conservadores, segundo uma análise dos dados do Pew Research Center de 2020, feita pelo psicólogo social Jonathan Haidt.)

Há também uma identificação claramente mais forte da esquerda com grandes instituições e com a expertise oficial do que no passado, e uma ânsia crescente de eleitores conservadores de votar contra o sistema. Veja-se não apenas a ascensão e resiliência de Trump, como também as invasões populistas do Partido Republicano em instâncias estaduais e locais, a valorização do 6 de Janeiro [invasão do Capitólio] e outros sinais de menosprezo aos processos democráticos normais. Veja-se também o correlativo intelectual desse populismo, a sensação de desespero sobre a América entre certos pensadores de direita, o impulso a favor de medidas desesperadas para mudar a trajetória nacional.

Você pode ver os contornos de uma teoria unificadora dessas tendências –tanto a imprudência da direita quanto a anomia liberal– em uma nova pesquisa encomendada pelo The Wall Street Journal que traça o declínio dos antigos valores consensuais na sociedade americana. Segundo a pesquisa, a proporção de americanos que dizem que o patriotismo é muito importante caiu de 70% em 1998 para 38% hoje. A porcentagem que considera a religião muito importante caiu de 62% para 39% no mesmo período. A porcentagem que diz que ter filhos é muito importante caiu de 59% para 30%. Só o dinheiro viu crescer sua importância declarada.

Como esses números circularam no Twitter como uma espécie de "pílula negra" do desespero cultural, devo enfatizar que o declínio real provavelmente não é tão acentuado. Como observou o especialista Patrick Ruffini, a pesquisa mudou sua metodologia entre 2018 e 2023, passando de pesquisas por telefone para pesquisas online. Isso pode ter inclinado as respostas mais recentes numa direção mais realista –a ideia é que as pessoas são menos influenciadas pelo que é chamado de viés de "desejabilidade social" nas pesquisas online e, portanto, nas pesquisas mais antigas, por telefone, o sentimento patriótico era provavelmente um pouco exagerado.

Mesmo que se deva duvidar do radicalismo da mudança, entretanto, a direção ainda coincide com outras tendências e pesquisas. Quer a pandemia tenha pisado no acelerador ou não, mesmo antes da Covid estava claro que os valores que os conservadores consideram fundamentais para a sociedade –e na pesquisa do WSJ são os republicanos que continuam valorizando mais a religião, o patriotismo e a geração de filhos– estavam passando por um recuo geracional.

De certa forma, apenas essa tendência basta para explicar como a estabilidade pessoal pode coexistir com a intensificação da alienação política da direita. Se você se sente seguro em seus próprios valores, confiante de que sua vida é bem vivida, mas a sociedade ao seu redor parece estar se afastando rapidamente desses valores, é natural ficar perplexo com a mudança, sentir que algo está muito errado, decidir que o sistema inteiro precisa de algum tipo de reinicialização forçada. E é fácil até cair na paranoia e na teoria da conspiração, porque parece inimaginável que tantos de seus compatriotas estejam abandonando o testado e comprovado; deve haver mais nisso do que apenas uma mudança nacional de mentalidade.

Em seguida, considere também que toda a premissa organizadora do conservadorismo americano pós-1960 era que o país como um todo compartilhava seus valores –daí a retórica da "maioria silenciosa" e da "maioria moral"– e que o problema era apenas uma elite de liberais, irreligiosos e antipatrióticos, mas também fora de contato com a amplitude e profundidade da sociedade americana. Remova o peso da burocracia ineficaz, acabe com o regime dos juízes liberais e veja o país florescer: essa foi a mensagem eficaz dos políticos republicanos e de alguns intelectuais conservadores durante muito tempo.

Cada vez menos conservadores acreditam seriamente que seja tão simples. Mas para onde vai a política conservadora sem uma base cultural tradicional para conservar? Para um retiro subcultural, talvez –mas se você acha que as paredes não vão aguentar, se você quer uma política de restauração, ela será inevitavelmente radical de uma forma que o conservadorismo de 30 anos atrás não era. E já que ninguém –nem os fanáticos por políticas que tateiam seu caminho para alguma nova forma de economia política de direita, nem os influenciadores online que vendem o tradicionalismo como marca de estilo de vida– realmente sabe como fazer uma restauração, como reverter a alienação, a desfiliação e a atomização, não é de surpreender que a política conservadora muitas vezes seja um acidente de carro, um arremesso de frutas maduras contra a parede, não importa o quão felizes os conservadores afirmem ser.

Para os liberais, o problema é um pouco diferente. Uma premissa organizadora do progressismo há gerações foi que o lado tóxico dos valores conservadores é responsável por grande parte do que aflige a sociedade americana –um nacionalismo cruel estrangulando um patriotismo saudável, um fanatismo fundamentalista ofuscando as formas esclarecidas de religião, patriarcado e misoginia envenenando a família nuclear. Assim, de muitas maneiras, as transformações das últimas décadas são as que os liberais buscavam: a América de hoje é mais socialmente liberal em quase todas as questões do que a América de George W. Bush –mais secular, menos heteronormativa, mais diversa em termos de raça e de identidade pessoal, mais influenciada por ideias radicais que antes pertenciam à periferia acadêmica.

Infelizmente, ao encontrar o desejo de seu coração, a esquerda também parece ter encontrado um certo tipo de desespero. Acontece que não há um fundamento óbvio para propósito, solidariedade e significado final depois que você desconstrói todas as fontes que considera contaminadas. E é na vanguarda dessa desconstrução, entre os jovens muito liberais, que se encontra a maior infelicidade –o próprio sucesso do projeto progressista devorando o contentamento.

Mas esse projeto está hoje arraigado em tantas instituições americanas que não há uma forma anti-institucional natural para esses descontentes assumirem. Em vez disso, você obtém os dois passos progressistas que observamos durante a pandemia: uma duplicação da fé na expertise oficial e a expansão das formas burocráticas de poder existentes, unidas a um impulso por maior purificação ideológica dentro dessas instituições, e a busca por uma revolução psicológica que finalmente erradicará as forças patriarcais brancas que ainda devem ser responsáveis por qualquer descontentamento restante.

Então há um terceiro passo, que é negar que os descontentamentos óbvios sejam realmente problemas. Esse é o fenômeno que Dustin Guastella, escrevendo na revista Damage, chama de "socialismo antissocial" –uma política de esquerda que acaba "desculpando ou ignorando o aumento constante do comportamento antissocial coletivo", por uma atitude defensiva sobre os modos isolados de vida urbana que especialistas e burocratas ajudaram a impor durante a pandemia, além do medo de parecer justificar as normas e ideias burguesas.

Assim, tudo, desde o declínio do casamento, do romance e do sexo até questões como crime, vício em drogas e doenças mentais, é reembalado como algo com que se espera que os progressistas convivam, e até valorizem, para não cederem um centímetro aos reacionários.

A realidade é que existe uma narrativa esquerdista coerente (ainda que insuficiente) sobre o declínio da família, do patriotismo, da religião –uma que enfatiza o papel corrosivo do capitalismo de consumo, seu efeito solvente sobre todas as lealdades superiores ao eu, seu interesse em criar vícios para todas as idades e estilos de vida. Às vezes, o movimento da safra 2016 de Bernie Sanders apontou nessa direção, o que fazia parte de seu apelo: o socialismo como defesa de coisas normais, trabalhadores comuns, lealdades tradicionais.

Mas a esquerda contemporânea está fundamentalmente empenhada em libertar o indivíduo da normatividade opressiva para sustentar qualquer defesa das religiões e costumes mais antigos, e por isso muitas vezes acabou como aliada cultural do consumismo, apesar de sua crítica do "capitalismo tardio".

Daí a nossa situação peculiar: uma esquerda outrora radical presidindo um tanto decepcionada a nova ordem que há muito desejava introduzir, enquanto uma direita outrora conservadora, convencida de que ainda tem o segredo da felicidade, olha para a desordem e o caos como sua única escada para voltar do exílio.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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