Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Ross Douthat

Iraque supera Vietnã como maior desastre da política externa dos EUA

Conflito no Oriente Médio fez Washington perder credibilidade e retardar ações relacionadas à ascensão da China

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The New York Times

No vigésimo aniversário da Guerra do Iraque, estamos na mesma posição relativa à invasão inicial quanto aquela em que os Estados Unidos se encontravam em 1985 relativa à chegada de nossas primeiras tropas de combate ao Vietnã, em 1965.

Assim, este é um momento útil para comparar os dois conflitos e seus efeitos e para considerar –provisoriamente, apenas provisoriamente—qual foi mais desastroso, qual intervenção merece ser recordada como a pior decisão de política externa de nossa história.

Estados Unidos bombardeiam complexo de palácios governamentais no centro de Bagdá próximo ao Hotel Palestine, local de concentração de jornalistas - Juca Varella/Folhapress

Por algum tempo, mesmo depois de meu apoio inicial à guerra ter se dissolvido e de a insensatez do conflito ter ficado evidente, duvidei que o Iraque ultrapassasse o Vietnã no ranking das debacles americanas.

Os EUA perderam a Guerra do Vietnã completamente; no Iraque, deixamos atrás uma república insegura e corrupta, em lugar de uma nova ditadura, com um governo que ainda permite uma presença militar dos EUA.

Internamente, o período em torno da Guerra do Vietnã foi horrível –uma onda de terrorismo doméstico, uma crise de autoridade, os anos 1960 azedando e dando lugar aos 1970. O imediato pós-Guerra do Iraque foi azedo e paranoico à sua própria maneira, mas, mesmo com a Grande Recessão, não tivemos o mesmo tipo de radicalismo e colapso social.

Quando Barack Obama foi eleito presidente, o conservadorismo americano parecia ter sido estraçalhado pelo Iraque, assim como o liberalismo americano foi estraçalhado pelo Vietnã. Mas no segundo mandato de Obama o impasse ideológico voltou.

Hoje existem motivos convincentes para enxergarmos o Iraque como o desastre mais histórico, que mais marcou sua época. O efeito do Vietnã sobre a vida americana foi mais comparável ao de uma febre, mas o efeito do Iraque parece ser o de uma doença degenerativa ou que envolve sucessivas recaídas.

A influência da guerra se infiltrou em outras crises sociais, como a epidemia dos opiáceos, que foi ficando mais visível e destrutiva com o passar do tempo.

Seus efeitos prolongados deixaram o mundo político mais suscetível ao radicalismo de esquerda e à demagogia de direita, ao mesmo tempo contribuindo para um clima persistente de pessimismo e desapontamento, clima esse que tem sido exacerbado por outras forças —as redes sociais, a pandemia.

Em nossas coalizões políticas, esses efeitos de desilusão parecem ainda maiores e mais permanentes do que aparentavam ser em 2010 ou 2015.

Desde que a guerra ajudou a dissolver a centro-esquerda belicista, ninguém foi capaz de reconstituir uma facção centrista forte no interior do liberalismo, e o resultado é que desde 2004 as instituições liberais têm sido puxadas cada vez mais para a esquerda.

Desde que a guerra desacreditou tanto o neoconservadorismo quanto o establishment republicano de modo mais geral, ninguém tem conseguido manter um contrapeso eficaz às diversas formas de populismo de direita, do Tea Party e trumpianas, que tornaram o Partido Republicano ingovernável e incapaz de governar.

E existe uma ironia especial no fato de que, mesmo com a agitação intelectual entre a direita da era de Trump, os esforços para forjar um "conservadorismo nacional" ou um populismo socialmente conservador às vezes parecem esforços para tatear de volta à plataforma de George W. Bush em 2000, antes de ele trocar sua política externa modesta por uma grande cruzada.

Mas é no efeito sobre a posição global dos EUA que os custos da Guerra do Iraque realmente não param de se acumular e agravar.

Está claro que não apenas a guerra por si só, mas também suas consequências secundárias, que não param de se alastrar –que incluíram nosso investimento excessivo inútil no Afeganistão, fatidicamente caracterizado como a "boa guerra" por muitos democratas que se opuseram à invasão do Iraque —nos mantiveram de mãos amarradas durante anos críticos de realinhamento geopolítico, fazendo com que fosse difícil sequer pensar sobre o renascimento do poder russo e a ascensão da China ao status de superpotência, o que dirá lidar com isso.

A influência praticamente certa de nossa derrota final no Afeganistão sobre a decisão de Vladimir Putin de invadir a Ucrânia não foi apenas um elo numa longa cadeia de consequências forjada pela Guerra do Iraque.

Da mesma maneira, nossa postura recém-convertida em agressiva diante do regime chinês é uma tentativa arriscada de recuperar o atraso na reação a transformações às quais deveríamos ter começado a prestar mais atenção uma década atrás.

E, embora seja possível exagerar os efeitos da Guerra do Iraque sobre as atitudes do mundo em desenvolvimento em relação aos EUA, está claro que nossa invasão nos fez parecer uma potência hegemônica menos confiável –mais imprudente e revisionista que estável e sólida.

Depois disso, o modo como a guerra contribuiu para nossas divisões e insensatezes internas também fez a cultura americana parecer menos admirável, e o projeto democrático liberal mais amplo, menos inevitável. Assim, não apenas Rússia e China, mas também outros centros de poder, da Índia à Turquia, foram empurrados na direção de caminhos pós-americanos e pós-ocidentais por tudo que se seguiu.

Agora voltemos à comparação entre 2023 e nossa situação na era de Reagan, uma década apenas depois de os últimos helicópteros terem deixado Saigon. Em 1985, tínhamos conseguido separar a China da Rússia, a economia soviética estava trôpega e Mikhail Gorbachev acabara de ser eleito secretário-geral do Partido Comunista.

A glasnost e a queda do Muro do Berlim estavam quase despontando. Hoje, com Rússia e China cada vez mais alinhadas contra nós e a influência chinesa crescendo, parece que estamos mergulhando novamente na espécie de embate crepuscular prolongado que em 1985 estávamos posicionados para finalmente transcender.

Assim, se 20 anos após o Vietnã pareceu um desastre que, com nossa força, fomos capazes de absorver, 20 anos após o Iraque mais parece a nêmesis de nosso império. Ponto final.

É claro que as aparências podem ser enganosas. Quase ninguém em 1985 se deu conta da rapidez com que a União Soviética iria desabar. Pode ser que a volta por cima dos EUA já esteja começando.

Temos recursos e formas de legitimidade que faltam aos nossos rivais mais autoritários; os sistemas deles são persistentemente vulneráveis aos caprichos do processo decisório autocrático.

E o conflito da Ucrânia é visto por alguns como uma possível porta para o renascimento –algo que vai revigorar o Ocidente tanto quanto Ronald Reagan, Margaret Thatcher e o papa João Paulo 2º o fizeram, atraindo Putin para o mesmo tipo de atoleiro que o Afeganistão ofereceu aos soviéticos, ajudando-nos a superar nossa doença decorrente do Iraque num prazo diferente do que ocorreu com nossa síndrome do Vietnã, mas com resultados semelhantes.

Não é por acaso que entre aqueles que mais apostam nesta esperança estão alguns dos maiores proponentes da Guerra do Iraque. Compreensivelmente, eles buscam a redenção por sua visão do poderio americano, senão pela própria decisão sobre o Iraque.

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