Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Ross Douthat
Descrição de chapéu The New York Times

O que significa ser 'woke'

Nomenclatura se insere em projeto cultural e psicológico, razão pela qual mídia e linguagem são campos de batalha essenciais

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The New York Times

A escritora conservadora Bethany Mandel teve o tipo de momento que pode acontecer com qualquer pessoa que ganha a vida falando em público: ao promover um novo livro criticando o progressismo, ela foi questionada por um entrevistador que pediu que ela definisse o termo "woke" –uma pergunta razoável, mas que fez seu cérebro congelar e suas palavras tropeçarem.

O vídeo viralizou e rendeu uma enxurrada de discussões sobre a palavra: ela pode ser definida de forma útil? É apenas um termo pejorativo usado pela direita? Existe algum rótulo universalmente aceito para o que pretende descrever?

As respostas são sim, às vezes e infelizmente não. Claro que há algo real a ser descrito: a revolução dentro do liberalismo americano é uma transformação ideológica crucial de nosso tempo. Mas, ao contrário de um caso como "neoconservadorismo", em que um termo crítico foi aceito pelo movimento que descrevia, nosso clima de inimizade ideológica dificulta a nomenclatura estabelecida.

Ilustração de Sam Whitney para a coluna de Ross Douthat de 18.mar.23 - Sam Whitney/The New York Times

Pessoalmente, gosto da expressão "Great Awokening" [trocadilho com "Grande Despertar"], que evoca as raízes do novo progressismo no protestantismo –mas obviamente os progressistas seculares o acham condescendente. Eu aprecio como o escritor britânico Dan Hitchens reconhece a dificuldade das definições ao chamar a nova política de esquerda de "a Coisa".

Então, deixe-me tentar um exercício diferente –em vez de um termo ou definição conciso, deixe-me escrever um esboço da visão de mundo "woke", elaborando sua lógica interna como se eu mesmo acreditasse nela. (Para o leitor incauto: estas não são minhas crenças reais.)

O que é a América, no melhor sentido? Igualdade e liberdade. O que é a esquerda, no melhor sentido? Transformar esses ideais em realidades vividas.

Mas esse projeto continua esbarrando em limites, decepções e derrotas. Para onde quer que você olhe, persistem terríveis disparidades. E essa persistência deve nos forçar a olhar mais profundamente, além das tentativas de obter direitos legais ou redistribuir riqueza, para as estruturas culturais e psicológicas que perpetuam a opressão antes que a lei e a política comecem a desempenhar um papel. É isso o que a terminologia acadêmica há muito tenta descrever –a maneira como gerações de poder racista, homofóbico, sexista e heteronormativo se inscreveram não apenas em nossas leis, mas em nossa psique.

E depois que você vê essas forças em ação não pode deixar de vê-las –você está... ora, "desperto"– e não pode aceitar nenhuma análise que não reconheça como elas permeiam nossas vidas.

Isso significa rejeitar, primeiro, qualquer argumento sobre diferenças de grupo que enfatize alguma força além de racismo, sexismo ou outros sistemas de opressão. (Na verdade, a própria medição da diferença –por meio de testes padronizados, digamos– é inevitavelmente moldada por essas forças opressoras.) Mesmo as diferenças que parecem mais obviamente biológicas, como aquelas entre atletas masculinos e femininos ou os corpos que as pessoas consideram sexualmente atraentes, devem ser presumidas como culturalmente inscritas –porque como podemos saber o que é realmente biológico até que terminemos de libertar as pessoas das restrições esmagadoras dos estereótipos de gênero?

Também significa rejeitar ou modificar as regras do procedimentalismo liberal, porque sob condições de profunda opressão, essas supostas liberdades são inerentemente opressivas. Você não pode ter um princípio efetivo de não discriminação a menos que primeiro discrimine em favor dos oprimidos. Não pode ter verdadeira liberdade de expressão a menos que primeiro silencie alguns opressores.

E tudo isso é necessariamente um projeto cultural e psicológico, razão pela qual a escola, a mídia, a cultura pop e a própria linguagem são os campos de batalha essenciais. Sim, a política econômica é importante, mas os arranjos materiais estão a jusante da cultura e da psicologia. Os socialistas apenas suavizaram o capitalismo, os ambientalistas apenas o regulamentaram. Se você quer salvar o planeta ou acabar com o domínio da ganância, precisa de um tipo diferente de ser humano, não apenas de um sistema que assuma valores patriarcais racistas e tente colocá-los numa coleira.

Você acha isso utópico demais? Considere uma prova do conceito, o que já vimos com os direitos dos homossexuais. Nesse campo, a esquerda derrubou um sistema de profunda opressão heteronormativa ao estabelecer um novo consenso cultural, na academia e na cultura pop e, apenas no final, na política e no direito, usando argumentos, mas também constrangimento, pressão social e outros meios "iliberais".

E veja o que aprendemos: uma vez que a homofobia diminui, milhões e milhões de jovens começam a se definir como o que realmente são, como alguma forma de LGBTQIA+, escapando finalmente das algemas da heteronormatividade. É por isso que a reação contra a disseminação da identificação transgênero entre crianças deve ser derrotada.

Se você acha muito dessa narrativa persuasiva –mesmo filtrada pela minha mente conservadora–, então o que quer que seja "woke" provavelmente descreve você. Se você recusar isso, seja bem-vindo às fileiras dos não despertos.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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