Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ross Douthat
Descrição de chapéu The New York Times

Leitura ingênua dos Evangelhos pode ser o que o cristianismo precisa

Livros de Mateus, Marcos, Lucas e João misturam imediatismo e mistério, mundano e impossível

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

The New York Times

Em um passado não muito distante, quando 90% ou 95% dos americanos se identificavam como cristãos, era difícil para quase qualquer pessoa nessa vasta maioria ler os Evangelhos cristãos ingenuamente –conhecê-los como seu público-alvo original pretendido, alguém que ouve as "boas novas" sobre Jesus de Nazaré pela primeira vez.

Em vez disso, quase todos os encontraram primeiro por meio das estruturas do cristianismo organizado –como um texto de escola dominical e estudo da Bíblia, a experiência da escritura inseparável da experiência da igreja– ou com as expectativas criadas pela influência cultural esmagadora do cristianismo.

Homem de batina branca diante de fiéis sentados em banco
Cardeal lava os pés de fiéis durante missa em Washington - Tasos Katopodis - 6.abr.23/AFP

Naquele mundo, mesmo o trabalho de crítica cética e desconstrução acadêmica foi realizado principalmente por pessoas que experimentaram primeiro a leitura piedosa e organizaram suas próprias interpretações contra doutrinas religiosas ou normas culturais que haviam rejeitado ou abandonado.

Essas dinâmicas persistem para os milhões de pessoas ainda criados dentro de alguma forma de fé cristã. Mas, com o rápido declínio do cristianismo institucional, as gerações mais jovens da América agora incluem um grande número de pessoas que têm apenas ideias vagas e de segunda mão sobre Mateus, Marcos, Lucas e João. Assim, um encontro mais ingênuo com o Novo Testamento pode se tornar mais normal, numa escala muito maior do que no passado. Tanto no nível popular quanto no acadêmico, mais pessoas experimentarão os Evangelhos primeiro como uma forma de testemunho e narrativa que precede qualquer conjunto plenamente realizado de doutrinas ou visão da igreja.

Como alguém criado no cristianismo, não posso dizer diretamente como é essa experiência. Mas a Quaresma, e especialmente a Semana Santa, em meu cristianismo católico pessoal, proporcionam um forte encontro com a narrativa do Evangelho, o texto bruto ofuscando os elementos litúrgicos e doutrinários mais do que o normal. Portanto, é um momento apropriado para especular sobre como o retorno de uma leitura mais ingênua pode influenciar a cultura mais ampla, seus possíveis efeitos no longo debate entre crentes cristãos e pretensos desmistificadores acadêmicos da fé.

Desde suas origens nos séculos 18 e 19, o projeto de desconstruir o Novo Testamento com ceticismo, em busca de um "Jesus histórico" diferente do Cristo da fé, muitas vezes combinou dois argumentos distintos. Primeiro, atacou a suposição piedosa de que os Evangelhos devem ser factualmente isentos de erros, historicamente perfeitos, precisos em todos os detalhes e transparentes nas doutrinas que implicam. Em segundo lugar, passou de identificar problemas específicos nos textos, tensões, aparentes contradições e possíveis erros a argumentar que todos os problemas são evidências de que os Evangelhos devem ter sido compostos muito depois do fato, como textos teológicos em vez de registros históricos, com conexões relativamente tênues com os eventos que descrevem.

Minha especulação é que uma leitura ingênua dos Evangelhos tende a separar esses dois argumentos. O leitor ingênuo, examinando os evangelistas em ordem, notará imediatamente muito do que os céticos enfatizam sobre as aparentes imperfeições dos textos. Que Jesus tem genealogias diferentes em Lucas e Mateus. Que cronogramas e detalhes diferem entre os autores. Que Jesus expulsa os cambistas do templo no início de seu ministério no Evangelho de João e pouco antes de sua crucificação nos outros. Que Jesus no Evangelho de João fala diferente, com seus longos discursos teológicos, do Jesus das outras narrativas.

Seja ou não possível resolver alguns desses problemas, eles se apresentam diretamente ao leitor e não requerem nenhum treinamento especial para serem percebidos. E o leitor ingênuo também compreenderá intuitivamente, sem que precise estar historicamente atento aos detalhes, os debates sobre a identidade de Jesus que consumiam a igreja primitiva. Todos os Evangelhos o apresentam claramente como um messias –mas a questão do que isso realmente significa não é completa ou consistentemente respondida em uma leitura inicial dos textos.

Mas o argumento desconstrucionista mais amplo –de que os problemas imediatos dos Evangelhos indicam que eles são criações muito depois dos fatos, movidos por agendas, mais do que memórias– é muito diferente: é uma leitura contra a experiência do leitor ingênuo.

Com isso, quero dizer que você deve entrar nos Evangelhos com uma estrutura cética para sair deles sentindo que a narrativa central não está profundamente enraizada no testemunho ocular, em coisas que os autores ou suas fontes imediatas realmente experimentaram e viram. O que C.S. Lewis certa vez observou sobre o Evangelho de João vale para os quatro Evangelhos: você pode dizer que as narrativas representam uma forma de livro de memórias ou pode dizer que são uma representação engenhosa de testemunho pessoal que exigiria as habilidades de um brilhante romancista do século 20. Mas o leitor que pensa que as narrativas são lidas como lendas posteriores, Lewis insiste com razão, "simplesmente não aprendeu a ler".

E muitos dos detalhes que são citados como evidência contra a ausência de erros, as dificuldades e discrepâncias são na verdade parte dessa experiência de leitura memorialista. Sim, os discursos teológicos em João ou as narrativas da infância em Lucas e Mateus podem ser lidos como produtos da piedade posterior. Mas as distinções mais minuciosas entre os Evangelhos, as diferenças sobre em que dia se deu um fato, em que linha do tempo uma série de milagres ocorreu, com quais testemunhas e assim por diante, são exatamente o que se esperaria de testemunhos que não foram deliberadamente conformados uns aos outros por autoridades posteriores, que vieram diretamente das pessoas que se lembraram da ação, com toda a variação que a memória normal acarreta.

Da mesma forma com todos os atos e palavras de Jesus que causaram intermináveis disputas teológicas mais tarde, por suas ambiguidades e implicações incertas. Essa disputa aconteceu (e ainda acontece) precisamente porque há tão pouca suavização teológica nos Evangelhos, tão poucos sinais de que os autores impuseram cuidadosamente uma clareza ideológica às experiências que se propuseram a relatar.

Na verdade, os próprios textos se autoproclamam como tendo essa qualidade imperfeita e memorialística. O Evangelho de Lucas, por exemplo, é bastante explícito em dizer que é uma compilação de diferentes depoimentos "transmitidos" por testemunhas oculares. O Evangelho de Marcos, em contraste, é muito mais parecido com o que as primeiras tradições cristãs afirmam ser: as memórias do apóstolo Pedro ditadas ou transmitidas a um escriba mais jovem.

Leia Marcos junto com os outros Evangelhos e observe quantas vezes a mesma história inclui um detalhe revelador, como as palavras aramaicas literais que Jesus usa ao realizar uma cura, que você esperaria que Pedro se lembrasse. Ou leia a Paixão de Marcos lado a lado com a Paixão de João –as negações de Pedro são mais detalhadas em Marcos, há mais informações privilegiadas e detalhes sobre a cena ao redor da cruz em João– e observe como os dois relatos são naturalmente lidos como os mesmos eventos narrados de perspectivas de testemunhas diferentes.

Ou, para dar um exemplo diferente, leia o relato de João sobre o milagre da transformação da água em vinho em Canaã ou a ressurreição de Lázaro. Os próprios milagres se encaixam na perspectiva teológica do autor, sua visão elevada da divindade de Jesus. Mas a maneira como Jesus realiza os milagres é tão humana, não divina e complexa –ao mesmo tempo irritado e receptivo à bajulação de sua mãe em Canaã, adiando deliberadamente a visita a Lázaro e depois chorando no túmulo–, que em cada caso a leitura natural é que se trata de uma lembrança real de eventos estranhos, do autor ou mesmo de Maria, a memória mais potente do que qualquer programa teológico.

O fato de uma leitura específica do Novo Testamento vir naturalmente não torna essa leitura correta, é claro –especialmente quando estão envolvidos milagres e outros remotos assuntos sobrenaturais. Mas a leitura natural neste caso também tem muitos estudos persuasivos ao seu lado.

Enquanto a leitura mais não natural, a que insiste que os Evangelhos foram em geral construídos mais tarde, tende a levar ao problema constante em tantos estudos sobre o Jesus histórico, onde o suposto "Jesus real" é meramente reconstruído à imagem do próprio estudioso, as memórias dos judeus do século 1o substituídas pelas autobiografias espirituais dos acadêmicos dos séculos 19 e 20.

Assim, minha previsão especulativa: o declínio do cristianismo institucional e o retorno de leituras mais ingênuas das Escrituras cristãs levarão ao declínio do projeto desconstrucionista, que tem sido sustentado todos esses anos pela necessidade sentida de desferir o golpe mais forte possível contra o poder e a tradição eclesiásticos.

Retire esse poder, jogue as pessoas nos textos sem uma preocupação anticlerical, e você não terá imediatamente um reavivamento da ortodoxia cristã. Mas poderá obter muito mais reconhecimento do que é óbvio em toda Páscoa: que em seu imediatismo e mistério, em sua urgência de chocar, em sua mistura de mundano e impossível, os Evangelhos são pelo menos a mais estranha história já contada.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.