Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

Futuro da humanidade depende de abertura à espiritualidade, mas se abrir demais é perigoso

Há que se preocupar com pessoas que brincam com crenças e experimentações sem acreditar nelas de verdade

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The New York Times

Os experts costumam classificar os fenômenos, especialmente em períodos de turbulência. Usamos rótulos como "populista" ou "nacionalista", por exemplo, para tecer generalizações sobre os anseios de milhões de eleitores, mesmo que muitos deles possam ser descritos com mais precisão como sendo simples experimentadores: pessoas que puxam alavancas diferentes ou descrevem guinadas à esquerda ou à direita sem qualquer objetivo certo exceto o de evocar uma experiência política diferente.

O que ocorre na política também ocorre com a religião. Como jornalista, estou sempre buscando uma terminologia que consiga captar as diversas divisões no interior do declínio mais amplo do cristianismo americano: católicos "progressistas" versus "conservadores", quando escrevo sobre minha própria igreja; "heresia" ou "ortodoxia" para descrever tendências na crença cristã ou ao redor dela; "secularismo" e "paganismo" para falar de vertentes do pós-cristianismo.

Mas a dissolução da velha ordem da religião americana –a decadência de igrejas e denominações e a ascensão da espiritualidade não institucionalizada— faz com que cada vez mais vidas religiosas sejam vividas no espaço intermediário entre diferentes visões de mundo, um território experimental do qual é errado esperar coerência, consistência teológica ou conjunto definido de premissas e crenças prévias.

Protesto de ativistas antiaborto em frente à Suprema Corte dos EUA, em Washington - Chip Somodevilla - 20.jan.23/Getty Images/AFP

Quero nesta coluna defender a racionalidade desse tipo de experimentação espiritual e então alertar para seus perigos (a discussão vai ficar mais esdrúxula conforme formos avançando). Antes, contudo, darei três exemplos do estilo experimental no qual estou pensando, que vão do geral ao específico.

Começo com o impulso juvenil amplo no sentido do que poderíamos descrever como pensamento mágico, que vai desde a moda da astrologia até a onda no TikTok de "manifestar" resultados desejados em sua vida. Isso é de certo modo uma extensão das espiritualidades de autoajuda ligadas à religiosidade americana desde sempre, mas neste momento a dimensão mágica é mais específica, enquanto o vínculo com a religião dos velhos tempos é fraco ou mesmo inexistente.

Ao mesmo tempo, não está claro até onde qualquer parte disso pode ser caracterizado como crença. O que vemos, em vez disso, é uma dimensão de faz-de-conta em tudo, variando desde "isto daqui não é de verdade, mas é divertido" até "talvez não seja real, mas é bacana brincar com isso" e chegando a "isto daqui é real mesmo, mas sabe-se lá o que significa". Mesmo algumas pessoas que se identificam explicitamente com a bruxaria parecem ter essa ambiguidade em sua identificação: são participantes de uma cultura de ritual e exploração, não pessoas que creem em um conjunto específico de postulados.

Um segundo exemplo é o fascínio crescente por drogas psicodélicas e alucinógenas, que assume formas seculares e científicas, mas também possui forte dimensão espiritual, com muitos participantes que creem que as drogas não apenas causam uma experiência dentro da mente como também abrem as "portas da percepção", nas palavras de Aldous Huxley, para captar realidades que existem constantemente acima e em torno de nós.

É claramente esse o caso da cultura espiritual emergente em torno da DMT, um ingrediente no caldo psicodélico conhecido como ayahuasca que já virou a viagem preferida dos chamados psiconautas, ou seja, exploradores do território espiritual que sua ingestão parece abrir para eles. Para muitos usuários a DMT parece proporcionar uma experiência estranhamente compartilhada: eles relatam ter se deparado com paisagens e seres semelhantes, como se todos tivessem se conectado com os arquétipos comuns de algum inconsciente junguiano (o que já seria suficientemente estranho por si só) ou se tivessem de fato ingressado no mesmo plano sobrenatural.

E essa última crença produz experimentação espiritual em sua forma mais pura: as pessoas que tomam DMT com essa finalidade não estão tanto praticando uma religião quanto tentando descobrir a base sobrenatural da religião e articular uma teologia pessoal a partir daquilo que encontram e veem.

Agora temos um terceiro exemplo, este muito específico: uma estátua apareceu recentemente num tribunal de Nova York ocupando um plinto perto de figuras de legisladores famosos como Moisés e Confúcio. É uma mulher dourada, ou pelo menos uma figura feminina, com cabelos trançados no formato de chifres, raízes ou cipós no lugar de braços e pés. Ela emerge de uma flor de lótus.

A escultora responsável pela figura, a americana de origem paquistanesa Shahzia Sikander, enfatizou o significado político de sua obra. A mulher dourada traja uma versão da gola rendada da juíza da Suprema Corte Ruth Bader Ginsburg, e a ideia é que ela deve simbolizar o poder feminino em um mundo jurídico historicamente dominado por homens e deve protestar contra a revogação de Roe vs. Wade.

Mas está claro que a obra também é uma tentativa de ícone religioso, um ícone forjado a partir de uma amálgama de tradições espirituais. Ela faz par com uma estátua semelhante, da mesma artista, que traz a palavra "Havah", evocando o nome de Eva em árabe e hebraico e, desse modo, assumindo uma posição feminista em relação à tradição monoteísta. Mas a imagem da estátua na sede da Suprema Corte também é panteísta, com as raízes e a flor evocando a espiritualidade da natureza, "um híbrido mágico de planta e animal", nas palavras de um crítico de arte. Finalmente, é difícil encarar as tranças-chifres, os cipós que remetem a tentáculos, como uma apropriação de imagens cristãs do demoníaco em uma estátua que se posiciona contra as posições políticas do cristianismo conservador.

Mas nenhuma dessas interpretações é estável; como as pessoas que brincam com magia ou fazem experimentos nas fronteiras da consciência, Sikander criou um ícone religioso destituído de significado religioso reconhecido, que é intencionalmente aberto a interpretações do espectador, que convoca energia espiritual de modo não específico.

Para o materialista intransigente, tudo que acabo de descrever faz sentido, desde que se entenda que é faz-de-conta, busca por experiências, experimentação artística. Apenas quando se torna sério é que tudo isso ofende a racionalidade.

Mas o próprio materialismo intransigente é uma estranha superstição moderna recente, e o tipo de experimentação que descrevo é na realidade muito mais racional do que a vida vivida como se o universo fosse aleatório e indiferente e os seres humanos fôssemos máquinas de transmissão de genes dotadas de uma ilusão de consciência.

Sim, há muitas práticas New Age e "místicas" que não fazem sentido ou conduzem apenas a esquemas de pirâmide; há armadilhas para crédulos em toda parte. Mas o padrão básico da existência e da experiência humana, um cosmos ordenado e matematicamente belo que oferece segredos extraordinários para a investigação humana e nos supre de todos os tipos de experiências espirituais desvairadas, mesmo em nossa era de suposto desencanto (e às vezes os oferece mesmo aos céticos profissionais), torna a abertura geral às possibilidades metafísicas um modo padrão que fundamentalmente faz sentido.

Isso se aplica especialmente se você não tem tradição teológica, se não teve educação religiosa para estruturar seu contato com os mistérios do universo –se você está começando do zero.

Mas, exatamente pelo fato de uma atitude de experimentação espiritual fazer sentido, também é importante ressaltar algo que é ensinado por praticamente todos os filmes de terror, mas mesmo assim é passado por cima em grande parte da espiritualidade americana: a importância de ser muito cuidadoso com sua atitude aberta, de não simplesmente dar como garantida a benevolência do reino metafísico.

Se o universo material tal como o encontramos é belo, mas também naturalmente perigoso e permeado de pecado e maldade em toda parte onde a iniciativa humana está em ação, não há razão para esperar que qualquer dimensão espiritual seja diferente. Não há motivo para pensar que ser "psiconauta" é menos arriscado que ser astronauta, mesmo que o risco assuma uma forma diferente.

Existem dados de sobra que apontam para os perigos. Nem todas as experiências de quase morte são celestiais; alguns dos usuários da DMT voltam traumatizados; consta que a Igreja Católica americana recebe um número crescente de solicitações de exorcismo, ao mesmo tempo em que sua influência cultural vem diminuindo em outras áreas. E deveria também haver uma incerteza fundamental até mesmo em torno de experiências inicialmente positivas: nem tudo que reluz é ouro, e a ideia de que certas forças estão determinadas a enganar ou utilizar você permeia as diferentes culturas religiosas (e até mesmo a cultura semirreligiosa que hoje envolve a experiência com óvnis).

Escrevo como cristão; minha religião adverte explicitamente contra a magia, vidência, convocação de espíritos e coisas semelhantes. (Os polemistas ateus costumam dizer que pessoas religiosas são ateias em relação a todo deus exceto o seu, mas não é o caso, na realidade; o cristianismo certamente aceita que existem outros poderes no mundo além de seu Deus trinitário). E faz sentido que, em uma cultura em que as pessoas estão reagindo contra o passado cristão, possa existir um instinto de ignorar tais proibições, de encará-las como apenas mais uma forma de chauvinismo patriarcal, de controle exercido por homens brancos.

Mas a premissa de perigo no reino sobrenatural não se limita à tradição cristã, e a ideia de que o panteísmo, o politeísmo ou qualquer outra alternativa ao monoteísmo ocidental automaticamente gere sociedades gentis e humanitárias não encontra confirmação alguma na história.

Assim, a partir de qualquer perspectiva religiosa, há razão para nos preocuparmos com uma sociedade em que as estruturas estão gastas e uma massa de pessoas partiu numa busca sem mapas ou então está brincando sem acreditar realmente com símbolos que evocam múltiplas espiritualidades ao mesmo tempo, ou mesmo empregando esses símbolos contra o que restou do cristianismo.

Algum elemento de perigo é inevitável. O futuro da humanidade depende de as pessoas abrirem as portas para o transcendental, não de se fecharem no materialismo e no desespero. Mas quando a porta está aberta, tome muito, muito cuidado com o que você convida para entrar.

Tradução de Clara Allain

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