Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

'The Crown' não entendeu que Windsors podem ter futuro após Elizabeth 2ª

Série que chegou ao fim em sua sexta temporada se envolveu demais com a singularidade de sua protagonista

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The New York Times

Durante o Natal, minha família terminou de assistir à sexta e última temporada de "The Crown" da Netflix, encerrando um relacionamento de vários anos com a versão levemente ficcionalizada de Peter Morgan sobre a Casa de Windsor.

Nos últimos anos, tem havido muitas produções audiovisuais de qualidade e poucas horas no dia. Por isso, raramente me vejo acompanhando uma série por várias temporadas —a menos que eu sinta que tenho uma forte relação com o propósito da produção, ainda que esse propósito seja apenas ser descontraída e divertida, como no caso da lamentável "Winning Time".

Imelda Staunton como a rainha Elizabeth 2ª na série "The Crown", da Netflix
Imelda Staunton como a rainha Elizabeth 2ª na série "The Crown", da Netflix - Justin Downing/Divulgação

No entanto, com "The Crown", a experiência foi mais como a de consumir um narcótico leve e levemente viciante. A série sempre foi suficientemente bela, com interpretações suficientemente boas, e suficientemente surpreendente para fazer você seguir para o próximo episódio, e para o seguinte —até que, antes que você se desse conta, já tenha quase chegado ao presente e às figuras familiares de Charles e Diana, Dodi e Camilla, e desistir parecia uma má ideia.

Então, você continuou até o fim, passando pela morte de Diana, por Tony Blair, por William e Kate, para no final sentar e pensar: "Para que serviu tudo isso?".

Se eu tivesse desistido mais cedo —idealmente quando eles puseram o charmoso Dominic West para interpretar o nada charmoso Charles, na 5ª temporada—, talvez eu estivesse menos confuso com o final.

Nas primeiras temporadas, "The Crown" podia ser visto principalmente como uma peça de época, um retrato da dissolução do Império Britânico do singular ponto de vista de sua jovem soberana, uma introdução a aspectos da história do Reino Unido do século 20 (o desastre de Aberfan, todo o fenômeno da princesa Margaret) os quais eu só conhecia superficialmente —uma vitrine para sotaques pomposos, atores famosos e cenas de caça nas Highlands.

Conforme se aproximava do presente, entretanto, a série declinou um pouco em qualidade —a escalação equivocada de West, a aparição bizarra do fantasma de Diana, a luta para tornar a vida universitária do príncipe William interessante— e se viu confrontada com o desafio de dizer algo sobre o que sua história significa para nós hoje.

"The Crown" sempre foi pró-monarquia, da mesma forma que "Downton Abbey" é pró-aristocracia. Todavia, "Downton" e suas sequências cinematográficas não seguiram (ainda) a família Crawley para além do final dos anos 1920, ao passo que "The Crown" foi, para completar sua saga, obrigada a dizer algo sobre o que o reinado da rainha Elizabeth 2ª significa para os anos 2020, o que ela realmente alcançou com sua longevidade e seu senso de dever, bem como que tipo de legado ela deixou.

E o que eles apresentaram foi bastante fraco. A última palavra do programa sobre sua era elizabetana foi dada pela versão de Jonathan Pryce do príncipe Philip, elogiando sua esposa no final da série por ter se recusado a abdicar não com base no que ela ofereceu (porque aguentar até o fim está na descrição do trabalho), mas "porque aqueles que vêm depois de você não estão minimamente prontos para assumir o controle".

E então, essa elaboração: "Você sempre esteve pronta. Você nasceu pronta. Você é única. Por outro lado, esse grupo... O bom é que isso não é problema nosso. É aqui que estaremos, você e eu. Bem embaixo desta pedra! Nunca ouviremos os gritos de lá de dentro. Você sabe que estou certo. O sistema não faz mais sentido para quem está fora dele nem para nós que estamos dentro dele. Todas as coisas humanas estão sujeitas à decadência e, quando o destino as convoca, até mesmo os monarcas devem obedecer. Somos uma raça em extinção, eu e você. Tenho certeza de que todos continuarão por aí, fingindo que tudo está bem, mas a festa acabou. A boa notícia é que, enquanto Roma arde e o templo cai, nós dormiremos, querida, dormiremos."

Não quero dar muita importância a um monólogo desconexo e não muito bem escrito (com exceção da citação a John Dryden). Mas depois de seis temporadas acompanhando todos os gestos de Elizabeth, a despedida final da série basicamente deu a entender que a história de sua vida era inútil.

A monarquia é antiquada e irracional; ela sobreviveu apenas por causa do acidente de ter uma rainha que viveu por muito tempo e era especialmente adequada para uma tarefa impossível; e nós fomos entretidos durante seis temporadas por um anacronismo puro, fadado a desaparecer como a Grã-Bretanha imperial quando Sua Majestade saiu do palco.

Obviamente, a monarquia pode ainda enfrentar dificuldades e perecer se a política britânica for desestabilizada de maneiras radicais por turbulências econômicas ou mudanças demográficas. Mas na era de Will e Harry, e com a bem-sucedida ascensão de Charles, é possível ver vários modelos de adaptação ao século 21 que eram menos óbvios há 20 anos.

Por um lado, como a última grande monarquia europeia em funcionamento em uma cultura global anglófona, os Windsor podem aspirar a desempenhar o papel de reis e rainhas cerimoniais do mundo inteiro. Pense nisso como o modelo que Diana inaugurou e Harry e Meghan tentaram (sem sucesso, até agora) concretizar, uma integração entre a aristocracia global e uma tentativa de se alavancar ou até mesmo dominar a cultura das celebridades em vez de resistir a ela.

O rei Charles 3º e a rainha Camilla acenam para a multidão da varanda do Palácio de Buckingham, em Londres - Leon Neal - 6.mai.23/Pool/AFP

Por outro lado, em uma Europa cada vez mais consciente de sua própria mortalidade, temerosa por seu futuro e se voltando para a direita de uma forma incerta, a Coroa se apresenta como uma instituição genuinamente preservacionista de um jeito que nenhuma outra forma de autoridade eleita pode reproduzir.

Pense nisso como o modelo para o qual Charles 3º tem se aproximado com seu tradicionalismo arquitetônico e agrário, suas cidades-modelo e o toryismo verde —embora seja necessário responder se é possível que esse projeto ofereça algo mais dinâmico do que apenas o cuidado de uma cultura de museu, e isso caberá aos seus herdeiros responder.

As últimas temporadas de "The Crown" tiveram ocasionais insinuações dessas diferentes possibilidades para o futuro da realeza, especialmente a preservacionista, no episódio em que a rainha resiste à sugestão de Blair de extinguir todos os tipos de cargos antigos, como o Guardião dos Cisnes.

Mas, no final das contas, a série se envolveu demais com a singularidade de sua protagonista para reconhecer que a monarquia poderia ter uma vida mais interessante e relevante após sua partida do que teve em seus últimos anos, incluindo uma vida que, em alguma crise futura, —e aqui é mera especulação— poderia envolver o exercício de poder real mais uma vez.

Mesmo deixando de lado tais fantasias, a realidade atual da monarquia britânica parece ser mais interessante do que sua representação ficcional. E se "The Crown" terminou com um sussurro porque não sabia o que queria dizer sobre o assunto, a história pode estar escrevendo a última palavra de forma mais interessante.

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