Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, é membro da Academia Brasileira de Letras.

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Ruy Castro
Descrição de chapéu

Cota de trapalhadas

Um dos dois —ou Temer ou o povo— vive num mundo paralelo

Bombas secas, postos fechados e ruas vazias contrastam com os comerciais otimistas de televisão
Bombas secas, postos fechados e ruas vazias contrastam com os comerciais otimistas de televisão - Zanone Fraissat/Folhapress

Nos intervalos da TV, os comerciais mostram pinguins dançando cha-cha-chá junto a bombas de gasolina, em postos onde se pode comprar desde ingressos para shows até passagens para a Lua quanto mais encher um tanque. Mas volta o noticiário, e a tela é tomada pelas bombas secas, os postos fechados e as ruas vazias. De repente, o programa começa a mostrar o que as pessoas desejam como “um Brasil melhor”. Todos querem saúde, educação, segurança. Mas ninguém aspira a um governo honesto e minimamente competente, o que resolveria a maioria dos problemas.

No Brasil, temos há décadas o pior dos dois mundos. Um destes, o da corrupção, está sendo revisado pela Lava Jato, mas o outro, o da incompetência, parece não ter solução. Michel Temer não só é suspeito no primeiro item como dirige um governo que vive de se desdizer e desfazer as mancadas que comete. Todo presidente faz jus a uma cota de trapalhadas, mas Temer abusa do direito de ser desinformado e mal assessorado. É o homem errado nos momentos mais impróprios, como a crise dos últimos dias tem demonstrado. 

Mas ele não se altera —acredita sinceramente que tudo se resolve pela retórica. Percebi isto na única vez em que o ouvi, na Feira do Livro de Frankfurt de 2013, que homenageou o Brasil. Como vice-presidente de Dilma Rousseff, Temer abriu os trabalhos. Ao discursar para uma plateia de alemães cascudos e escolados em Kant, Schopenhauer e Heidegger, falou da professorinha do curso primário que o instruiu a ler “O Guarani”, “A Mão e a Luva” e “A Moreninha”. Fez isto sem corar.

A simples visão de Temer embrulhado em seu paletó como um lombinho de supermercado e, ao falar, regendo uma orquestra imaginária com os dedos enquanto o país se desfaz, leva a crer que um dos dois — ou ele ou o povo— vive num mundo paralelo. 

Como o dos comerciais que antecedem o noticiário.

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