Você atende ao telefone e, do outro lado, uma voz feminina diz: “Alô! Aqui é a Carol. Quero falar com... Lúcia”. Como você se chama Hildebrando ou Hermógenes e, em todo caso, não se chama Lúcia, titubeia por um instante para responder —o que dá tempo à Carol para insistir: “Estou falando com... Lúcia?”. A pausa antes do nome já deveria tê-lo alertado. Carol é uma máquina, e essa mensagem deve se dirigir a muitos números de telefone. Um deles caberá a alguma Lúcia e, então, uma voz humana entrará em ação para lhe vender qualquer coisa. Outras mensagens terão como alvo as priscilas, as stéfanes, as suélens e outros nomes da moda.
Como você não é Lúcia e demora um ou dois segundos para mandar Carol à merda, ela se faz de desentendida e completa: “Desculpe. Ligarei de novo em outra hora”. Nos dias seguintes, você receberá essa ligação dezenas de vezes e, escolado, já nas primeiras sílabas mandará a Carol àquele aprazível lugar.
Entre os negócios florescendo em tempos de quarentena, esse é dos mais cruéis: o de empresas que, sabendo-o em casa, ligam para o seu número oferecendo-lhe algo de que você não precisa —e de que, uma vez mordida a isca, nunca mais se livrará. É verdade que isso não é de hoje. Uma senhora que conheci aceitou assinar uma revista de corte e costura da extinta Editora Abril e, meses depois, já fora induzida a assinar revistas sobre reparo de motores, navegação a vela e Ultimate Fighting. Tinha mais de 80 anos.
Ao mesmo tempo, pode também acontecer algo de que fiquei sabendo outro dia. Há pessoas condenadas a tal grau de solidão pelo confinamento que não podem dispensar nem os telefonemas da Carol. Ao constatarem que estão falando com uma máquina, fingem não perceber. Vão em frente e, por algum tempo, submetem-se às perguntas que ela lhes faz. Isso as ajuda a atravessar o longo dia.
A pandemia está afetando também a alma.
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