Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu

Samba do etimologista doido

O auxílio-moradia de nossa casta togada é, desde o latim, parente do favorecimento

Jorge Luis Borges (1899-1986) fotografado em 1980 ao lado de seu gato Beppo
Jorge Luis Borges (1899-1986) fotografado em 1980 ao lado de seu gato Beppo

O auxílio, o aumento, o exagero, a autoridade e seu halo augusto, até o mau agouro. Todas essas palavras frequentam, nas reuniões de família, a mesma mesa em torno da qual se reconhecem e se estranham. A mesa se chama etimologia.

Estamos em pleno samba do etimologista doido, sujeito delirante que lança sobre a história das palavras um olhar de poeta e não de pesquisador. Trata-se de um dos modos de fazer crônica linguística que o colunista guarda em seu bornal para momentos de aperto.

Quem mandou o auxílio-moradia de nossa casta togada inocular no coitado a velha febre? Foi só descobrir que o latim augere, que inaugurou (verbo que é mais um parente) essa dinastia de palavras, tem entre seus sentidos originais aumentar, elevar a honra, enriquecer, favorecer, proteger.

Ora, veja só. Não são bem essas as ações que a tão presunçosa quão incompetente elite administrativa de um paisão de poucas luzes se especializa há séculos em cultivar, lutando para ampliar ao máximo a distância entre seus traseiros e a malta desprovida de direitos que as rodas da carroça gigante esmagam e transformam em adubo?

É verdade que "auxilium", galho da mesma árvore latina, nasce com instintos nobres, levando socorro aos desfavorecidos. Mas o etimologista doido sabe que por trás desse ar de santidade, inscrito em seu código genético, dorme desde o início o favorecimento aos poderosos.

Ignorando todos os agouros, a autoridade augusta mais três palavras do clã aug- que nos ajudam a entender essa tragicomédia acaba por acreditar, alucinada, em sua própria majestade. Diz que está tudo na lei, e está. Ela mesma a escreveu e promulgou. O Estado é ela.

Ela e seus amigos de sempre da esfera pública e privada. Ela e seus sócios. Ela e seus aliados à esquerda e à direita. Ela e seus fundamentalistas do direito adquirido ao luxo, seus corporativistas, suas milícias do Estado intocável.

Enquanto isso, estendida até onde a vista alcança, uma multidão de analfabetos funcionais vive (pouco) e morre (muito) em taperas equilibradas sobre uma malha intrincada de canais de esgoto a céu aberto. O fedor é insuportável.

Que país desgraçado, pensa o etimologista doido. Ainda bem que vai começar o Carnaval.


Passada a febre, o colunista gostaria de acrescentar que considera o estudo da origem das palavras um saber subestimado. Seu grande apelo popular é inversamente proporcional a seu atual prestígio acadêmico.

A maioria dos livros sobre o tema está relegada a sebos (uma das exceções é o dicionário Houaiss, que dá um discreto show etimológico no pé de cada verbete). Pouco se fala do assunto nos cursos de letras.

Talvez isso decorra do fato de ser a etimologia identificada com velhos filólogos, cultores de uma relação com as palavras que a linguística moderna trata como romântica e pré-científica.

Até Jorge Luis Borges, escritor-filólogo com muito de romântico e pré-científico, mostrou-se desdenhoso. Saber que, em latim, cálculo significa pedrinha, e que os pitagóricos usavam dessas pedrinhas antes da invenção dos números, não nos permite dominar os arcanos da álgebra, escreveu.

Impossível discordar. Mas que é uma delícia, é.

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