Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu

'Você leu todos esses livros?'

Velho acumulador de papel, o colunista faz progressos, mas nunca abrirá mão da sua tara 

Sala de livros raros em livraria da zona sul de São Paulo
Sala de livros raros em livraria da zona sul de São Paulo - Niels Andreas - 20.nov.2011/Folhapress

Olá, meu nome é Sérgio e eu sou um acumulador de livros. Talvez devesse dizer que, sendo por natureza um acumulador de livros, hoje estou melhor. Acabo de vender ao alfarrabista, de uma só vez, 
um lote de 662 volumes!

Sim, há palavras mais lisonjeiras do que “acumulador” para nomear minha condição. “Bibliófilo”, a mais pomposa, me encheu de orgulho uma época. Um dia me dei conta de que os bibliófilos eram muito diferentes de mim.

Além de gastar fortunas em edições raras, algo que nunca me tentou, moravam em casarões forrados de estantes envidraçadas e atendidas por cuidadores profissionais. Jamais permitiriam que anos de pó se acumulassem em prateleiras intrometidas por todos os cantos de apartamentos compactos, inelásticos, incompatíveis com tamanha acumulação.

Bibliômano, quem sabe? A palavra importa pouco. Mais proveitoso é tentar definir o mecanismo psicológico por trás da minha tara, que, eu sei, é a de muita gente. Somos aqueles que, volta e meia, ouvem de uma visita: “Você já leu todos esses livros?!”

Escapa ao boquiaberto autor da pergunta que ler é só parte da graça. Ter uma biblioteca particular faz o verbo “ler” explodir numa miríade de tempos e sentidos, alguns potenciais (ah, um dia, mal posso esperar), outros de pura virtualidade (eu leria, mas...). 

À medida que o número de livros cresce e a idade do dono também, intensifica-se o fluxo migratório 
de títulos da primeira para a segunda categoria.

Isso para não mencionar os sentidos mais pragmáticos ou fantasiosos da leitura cruzada (vamos a uma rápida busca na página 157, que fulano cita em outro livro), da leitura de trechos ao acaso, da consulta a livros de referência e, claro, do simples e desavergonhado voyeurismo de lombadas nuas em desfile. Como são doces os prazeres da acumulação!

Mas isso ainda não chega ao cerne da coisa. No meu caso, pelo menos, acredito que a justificativa mais funda para o investimento numa bagagem de vida tão pesada quanto milhares de livros sempre tenha sido a de me tornar —aqui cabe um pigarro— um arquivista do meu tempo. No mínimo, do meu tempo visto da minha janela. Uma testemunha de... de quê mesmo?

Delírio, claro. Não existe tara sem desvario. Seja como for, a justificativa imodesta escorreu faz tempo pelo ralo digital. Ninguém mais precisa ter livros para, bem, ter acesso instantâneo a livros. A mais livros do que qualquer um conseguiria juntar em sete vidas. 

É por isso que estou melhor. Se os 662 tabletes folhados que despachei para o sebo são só uma fatia do todo, paciência. Minha mulher ficou aliviada com a parte que foi embora, levando milhões de ácaros. E eu dou mais valor ainda à parte que ficou.



Antes de encerrar a conversa da semana passada sobre o politicamente correto, um esclarecimento aos leitores que viram choro vitimista no meu artigo: só um bobão de ultradireita considera os brancos “oprimidos” pelas minorias. 

Minha crítica ao “cale-se, privilegiado” é a defesa de um princípio, o da livre expressão. Acredito que, se avacalhado, ele fará falta a todos, mas muito mais à parte fraca do jogo social. Posso estar errado, mas seria bacana ler uma refutação menos pueril do argumento.

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