Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

O país dos hidrantes secos

Sistema antifogo em santuários cheios de peças insubstituíveis para quê?

Bombeiro em escombros do Museu Nacional, destruído por incêndio
Bombeiro em escombros do Museu Nacional, destruído por incêndio - Carl de Souza/AFP

O hidrante seco é um símbolo do Brasil. Primo-irmão da privada seca, mais conhecida como penico, emblema do “país do futuro” em que metade da população não tem acesso a redes de esgoto, o baixinho notável conheceu mais um momento de brilho na noite de domingo.

Aliado do terrível fogo, o Grande Fogo Purificador que mora dentro das armas que levam seu nome, o hidrante seco —ou meia bomba, dá no mesmo— ajuda a limpar o mundo de toda frescura, 
toda sutileza, todo verniz civilizatório com suas relíquias, pesquisas, memórias e apego a coisas inúteis.

Implacável na busca da essência, o GFP reduz nossa confusa realidade ao que importa —primeiro ao esqueleto carbonizado, depois a cinza, a pó, de onde nos restará a tarefa de reconstruir um país livre de história e purgado de desvios humanistas.

Ou será coincidência que o meteorito do Bendegó tenha resistido ao holocausto enquanto dos artefatos toscos urdidos por povos incapazes de sobreviver ao progresso já não há bulhufas? Sobre qual pedra ergueremos o futuro?

Deus nos livre de hidrantes com água, santuários abarrotados de peças insubstituíveis com sistema antifogo, museus modernos e acolhedores frequentados por multidões, multidões que saem da escola sabendo ler o que está escrito nas plaquetas de identificação das peças.

Soldadinho do fogo impalpável, seu anjo de ferro entre os mortais, o hidrante seco é de sublime inutilidade, como o gesto estético que funda toda arte, mas nela ancora uma função superior: a de nos negar a menor ilusão de luta. Não é pouco. 

Vejamos. Talvez não houvesse mesmo nada a fazer aquela noite. A precária força humana chega a ser ridícula quando se defronta com tantas décadas de descaso acumulado num só lugar: desinteresse, desinvestimento, fios expostos, tábuas rangendo, escadas bambas, salas fechadas, público arisco.

Como impedir que arda o cipoal ressequido de culpas entrecruzadas entre administrações universitárias, gerações de governantes de mão fechada e cabecinha também, público indiferente? Mas, ah, como teríamos lutado mesmo assim! 

Isto é, se o hidrante seco deixasse. Mas não deixou, nunca deixa. É uma obra-prima. Uma peça de Duchamp. Um dedo médio vermelho erguido na esquina, convidando todo mundo a nele pousar 
o traseiro e relaxar.

Rendidos ao seu poder, bombeiros borboletearam inúteis ao redor da hecatombe e diante das câmeras de TV, coçando a cabeça. Alguns verteram lágrimas, mas estas, embora sinceras e hídricas, jamais teriam volume para inflar as mangueiras impotentes. Mandou-se buscar água, operação trabalhosa que leva tempo. E tempo é a matéria que o GFP queima primeiro, às gargalhadas.

Importamos a palavra “hidrante” dos EUA há um século. Os ingleses não gostam do original “hydrant”, dizem que não passa de um americanismo e que sua formação a partir do elemento grego 
“hydor” é irregular.

Pode ser, não convém discutir com o dicionário Oxford. Mas parece que no país de John Orr —bombeiro de Los Angeles que em 1991 foi preso e condenado como o piromaníaco responsável por 2.000 incêndios— hidrantes compensam a morfologia plebeia com o fato de que funcionam.

Com isso quero dizer o seguinte: jorram água! Sim, em catadupas. A menos que sejam forjadas aquelas fotos antigas, clichês jornalísticos de verão, em que crianças brincam risonhas diante de hidrantes abertos. Mas não, é claro que as fotos não são forjadas. Que país mais sem imaginação. 

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