Agora que foi parar até na ONU, a “cuestão” de Bolsonaro não pode mais ser ignorada por uma coluna que fala de questões linguísticas. Estaremos diante de um erro grosseiro de prosódia?
É quase instintivo responder que sim. Afinal, trata-se da fala de alguém que, mesmo lendo o teleprompter, demonstra intimidade abaixo de zero com a língua. Mas o caso é mais complicado.
A oscilação de pronúncia da vogal U na palavra questão nunca foi pacífica entre os gramáticos. Com a aprovação de grande parte dos sábios, a quase totalidade dos falantes emudece o U, mas a minoria tem seus defensores.
O “Houaiss” informa que ambas as pronúncias são aceitáveis. Já o fazia quando, na norma ortográfica anterior, havia trema para diferenciar as duas formas. Em sua primeira edição, de 2001, o dicionário trazia o verbete “questão” como preferencial e, remetendo a ele, “qüestão”.
Aliás, se o trema não tivesse desaparecido da língua brasileira com o acordo ortográfico (na lusitana já estava extinto), usaríamos “qüestão” para registrar por escrito um dos cacoetes linguísticos mais marcantes de JMB.
Como se sabe, já não temos esse recurso, o que nos obriga a saber de memória a diferença entre a linguiça e o enguiço —o que não é problema algum. Sendo assim, tem-se usado a grafia “cuestão”.
O “Houaiss” aceita esse jeito de falar, mas não o recomenda. Napoleão Mendes de Almeida (1911-1998), que chegou a ser um personagem quase pop como gramático conservador, defendia com vigor a pronúncia “qüestão” como a única correta.
Seu argumento era o da fidelidade etimológica. Se em inglês (“question”), italiano (“questione”) e espanhol (“cuestión”), o latim “quaestionis” gerou palavras em que o ditongo crescente original é preservado, por que resolvemos transformá-lo em dígrafo, ou seja, duas letras para representar um só fonema (/k/)?
A resposta é singela, mas irrefutável: porque sim, ora. Porque nosso ouvido assim o quis, e quem dirá que faltam exemplos de dígrafos semelhantes em português se apenas nesta frase já encontramos um punhado deles?
O fato é que, embora a gramática tradicional sempre tenha se preocupado com a definição de uma ortoépia, uma pronúncia correta, culta, quem decide como falar sua língua é o falante. Ponto.
Isso torna a forma sonora das palavras sujeita a variações. “Subsistência”, por exemplo, não deveria ter um som de Z no meio, algo que alguns ultraconservadores ainda condenam, mas para imensas multidões de falantes tem. Hoje poucas pessoas chamariam isso de erro —e as que o fazem estão erradas.
A prosódia está em movimento no tempo, acompanhando a história, e no espaço, em variações regionais. Há casos, como o de “líquido”, em que a duplicidade é bem aceita pelos sábios. Existem formas variantes condenadas por todos —“gratuíto” é uma— e que mesmo assim não morrem.
Mais interessante do que avaliar a questão de “cuestão” pelo prisma da normatividade é entender suas implicações culturais.
A pronúncia de Bolsonaro está identificada com certo ranço pedante e sabichão, coisa de quem se compraz em contradizer todo mundo em nome de alguma filigrana erudita que vai caindo no esquecimento.
Nesse sentido, “cuestão” lembra aquela estranha pronúncia para a palavra “abrupto”, a brasileiríssima “ab-rupto”, que só 17 falantes, todos homens com mais de 70 anos, ainda empregam. Pode não atingir o mesmo nível de ridículo, mas joga no mesmo time.
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