Pessoas podem ser presas na cadeia, palavras não: a metáfora e a metonímia logo providenciam um habeas corpus. Bom exemplo disso é a própria palavra “cadeia”, com sua cadeia de sentidos entrelaçados.
No caso, tudo começou com o latim “catena”, isto é, corrente, grilhão, conjunto de argolas de metal, geralmente de ferro, presas uma na outra para formar uma peça longa.
Por se prestar com excelência à função de prender pessoas, papel no qual se mostrava bem mais segura que a velha corda, a cadeia original acabou por nomear o próprio lugar onde se dava a privação de liberdade dos condenados, como sinônimo de prisão.
Por trás dessa expansão de sentido estava a poderosa e onipresente metonímia, com uma parte envolvida no processo (a corrente) passando a nomear o processo todo (a privação de liberdade).
Contudo, isso era só o começo. A cadeia não demorou a passar por um novo desdobramento semântico, dessa vez de inspiração metafórica.
Por analogia com a ideia de elos, círculos encadeados, nasceu a acepção de cadeia como sequência de coisas ou eventos que têm natureza comum ou que são de alguma forma dependentes uns dos outros.
Dessa cadeia-sequência, como se sabe, a língua faz uso amplo e diversificado: falamos em cadeia de montanhas, cadeias de lojas e cinemas, cadeia alimentar etc.
Metáfora e metonímia, como vimos, são as forças que levaram a palavra da ancestral forja do ferreiro à reação em cadeia da era nuclear.
São o tempo e o vento do mundo das palavras: sob sua ação, nada para quieto, os sentidos dançam e se reconfiguram.
Outro exemplo do poder transformador dessa ação é o vocábulo “volume”. Suas diversas acepções podem ser agrupadas nos seguintes sentidos principais: quantidade ou massa; espaço tridimensional ocupado por um corpo; intensidade de som; cada um dos livros ou tomos que compõem uma obra maior.
O que todos os sentidos de volume têm em comum é o fato de ser praticamente impossível enxergar, enterrado neles, o elo com o significado original da palavra que lhes deu origem, o substantivo
latino “volumen”.
Parente do verbo “volvere”, “volumen” queria dizer “rotação, movimento giratório”. O botão dos equipamentos de som que giramos para ajustar o volume pode parecer parte da explicação, mas não passa de uma pista falsa, também chamada coincidência.
O percurso que fez o “volumen” até chegar aos sentidos atuais de volume começa com o rolo de papiro da Antiguidade. Ali estava o “movimento giratório” nomeando, por metonímia, o livro cilíndrico que era preciso desenrolar para ler.
Só alguns séculos mais tarde, quando a palavra já havia se desapegado do rolo primitivo para encarnar na era dos livros encadernados que prescindem de qualquer movimento de rotação, é que o volume pôde alçar novos voos, agora nas asas da metáfora.
Passo a palavra ao dicionário etimológico “Merriam-Webster”, que conta a seguinte história no verbete sobre o inglês “volume”: “No século XVI, ‘volume’ já tinha adquirido a acepção adicional de ‘tamanho ou envergadura’ (de um livro), o que levou ao desenvolvimento do sentido geral de ‘quantidade, montante ou massa de qualquer coisa’.”
A acepção de intensidade do som, encadeada de forma bastante evidente com a de quantidade ou massa, é a mais recente delas. Segundo o referencial “Trésor de la Langue Française”, data de 1761 o primeiro registro do uso de volume nesse sentido.
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