Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Marketing jurídico de lacração

Ação contra Magazine Luiza abre novo capítulo para a gíria da década

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O defensor público federal Jovino Bento Junior lacrou. Não, não faltam vozes no mundo jurídico para atestar que sua ação contra o Magazine Luiza é um pastel de vento. Ocorre que a lógica da lacração sempre dispensou substância.

O estalinho lançado na direção do programa de trainees exclusivo para negros da grande rede varejista tirou seu autor do anonimato. Os que já eram convertidos à ideia do “racismo reverso” saíram vibrando. Lacrou ou não lacrou?

Não faltará quem ache descabido associar essa gíria nascida há pouco tempo no vocabulário LGBT, nas franjas do ultraprogressismo, com uma peça jurídica reacionária de inspiração olavista. Entendo a ponderação, mas a culpa é de uma palavra que se move depressa.

Para que a lacração de Jovino Bento Junior fosse possível, a gíria mais quente dos últimos tempos precisou esfriar e ser desgastada até o sabugo nas redes sociais, perdendo a potência que um dia possa ter tido.

Nascida com conotações sexuais (de vedar um orifício), a princípio a nova acepção do verbo lacrar era algo como “ter êxito indiscutível numa disputa ou debate, encerrar um assunto, calar a boca dos críticos”.

A ação do jovem defensor público falha em tudo isso, é claro. Acontece que a lacração nunca encerrou discussão alguma, a não ser para quem já tivesse na tal disputa uma posição definida —e à prova de argumentos.

Foi isso que a tornou uma gíria tão bem sucedida em nosso tempo de polarização máxima, voz alta e convicções blindadas, traços marcantes das redes sociais em seu atual estágio de desenvolvimento.

Lacração é uma candidata de peso a palavra da década que termina. Lacrar é proclamar vitória unilateralmente. Fazer uma jogada de efeito que deixe eufórica a torcida a favor e furiosa a torcida contra. Dinamitar a possibilidade do pacto entre diferentes visões de mundo —ou seja, a democracia.

Foi por isso que, tendo tido ascensão fulgurante, a lacração envelheceu depressa. Chamar uma ação de lacradora, que era elogio rasgado, virou em poucos anos crítica pesada.

A lacração foi se revestindo de conotações cada vez mais negativas. Passou a ser identificada com jogo de cena, superficialidade, apelação, exibicionismo, oportunismo, desonestidade, mimimi.

Hoje a versão positiva da palavra vai sendo abandonada pelos jovens progressistas invocados que a fizeram nascer. A lacração parece ter fôlego para durar mais um tempinho, mas tudo indica que sua acepção negativa venceu a batalha.

A velocidade com que a palavra cumpriu todo esse arco dramático em meia dúzia de anos indica que a volatilidade e o movimento, alma das gírias de todos os tempos, estão se acelerando. Como tudo.

Cabe, de qualquer modo, reconhecer um mérito linguístico na ação do intimorato defensor público dos brancos oprimidos. Ao invocar a versão negativa da lacração e entronizá-la na ciência jurídica brasileira, ele abre um novo capítulo para o vocábulo.

Condenando a ação afirmativa do Magalu, escreve: “Trata-se de fenômeno amplamente difundido hodiernamente, sendo que os profissionais que trabalham com publicidade, propaganda e marketing já possuem até mesmo um nome técnico para ele: marketing de lacração”. A fonte? Um site olavista.

Deve ser a primeira vez que “hodiernamente”, cafonice típica do juridiquês brasileiro, divide a mesma frase com a ex-“gíria gay”. Trata-se da cereja cômica numa peça perfeita de marketing jurídico de lacração.

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